quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Macaco, olha o teu rabo - Mauro Malin

Dificilmente alguém poderá exagerar as dificuldades criadas para a Venezuela (e para Cuba) pelo agravamento do estado de saúde do presidente Hugo Chávez. A Venezuela está dividida. E não apenas entre chavismo e oposicionismo. Há basicamente quatro correntes do chavismo em luta pelo poder pós-Chávez: a dos militares, a do Partido Socialista Unificado da Venezuela, representada por Nicolás Maduro, presidente em exercício, a da economia e a do setor de energia (petróleo e gás, responsáveis por 95% das exportações venezuelanas).

E tem Cuba. Um primeiro-ministro cubano, Carlos Lage, disse em 2005 que a ilha tinha dois presidentes, Fidel Castro e Chávez. Hoje tem um só, Raúl, que por sinal defenestrou Lage em 2009. Mas talvez a Venezuela tenha dois governos: o chavista e o castrista.

O envolvimento de cubanos na Venezuela vai muito além do fornecimento de dezenas de milhares de médicos para o principal programa social criado por Chávez, Barrio Adentro. Um dissidente cubano, o escritor Orlando Luis Pardo Lazo, diz que “os serviços secretos da ilha atuam na equipe de assessoria e segurança do presidente moribundo, e infiltrados na oposição venezuelana” (O Estado de S. Paulo, caderno “Aliás”, 13/1). É grave.

A oposição venezuelana não tem do que se orgulhar. No presente, mal levantou a cabeça na eleição presidencial em que Chávez conquistou seu quarto mandato presidencial (7 de outubro de 2012). No passado, era governo e conduziu o país ao estado lastimável em que o encontrou o coronel Chávez.

O professor Antonio Carlos Peixoto (1940-2012) dizia que o esfacelamento da oposição a Chávez tinha levado a mídia a tentar substituí-la (veja aqui entrevista de Peixoto ao Observatório da Imprensa).

Golpe com a maioria

Talvez por solidariedade a seus homólogos venezuelanos, os mais influentes meios jornalísticos brasileiros fizeram eco aos protestos da oposição venezuelana contra o golpe constitucional que adiou a posse de Chávez para novo mandato. Ao pé da letra, golpe, mas com o apoio do eleitorado, da Assembleia Nacional, da Justiça e dos governos do continente.

Levando-se em conta com um mínimo de realismo o quadro político venezuelano, provavelmente a solução menos ruim. Tal como a posse de José Sarney em 1985, que não chegou a ser um golpe, porque feita com a concordância do poder que se retirava do proscênio (mas não da cena) – os militares. Foi um acordo político. Benéfico, a despeito de tudo que se possa criticar no governo Sarney.

Golpe contra o golpe

Na história recente do Brasil houve um golpe militar benéfico. Foi o que permitiu a posse de Juscelino Kubitschek, eleito em 3 de outubro de 1955. O mandato dele coincide com o período que se chama, não sem razão, de “anos dourados”. A JK podem ser creditados a plena vigência da democracia nos moldes definidos pela Constituição de 1946 (e estreitados no governo do general Eurico Dutra), o primeiro grande – e decisivo – impulso de industrialização do país, obras estratégicas de infraestrutura, notadamente na área energética e rodoviária (não na ferroviária), a abertura do caminho para o oeste do país (a construção de Brasília suscita polêmica), o maior salário mínimo da história, o de 1959, que equivaleria hoje a três vezes o que está em vigência. Nenhum dos grandes jornais ou revistas manifesta antipatia pelo período JK.

Em 11 de novembro de 1955, o ministro da Guerra, general Henrique Teixeira Lott, liderou um “golpe antigolpe”. Um resumo do episódio mostra que o Brasil não tem como dar lição de moral à Venezuela. (Sem mencionar que a última ditadura venezuelana terminou em 1958.)

A candidatura de JK

Getúlio Vargas, acossado por uma campanha política e de agitação militar e jornalística para derrubar seu governo, comete suicídio em agosto de 1954. Assume o vice, João Café Filho, que nomeia ministros conservadores e muda a política econômica e social.

No final de 1954, JK, do PSD, governador de Minas Gerais, lança sua candidatura à presidência da República. Os ministros militares dizem a Café Filho que Kubitschek não pode ser candidato. Ele transmite o recado a Juscelino, que não aceita a injunção.

Carlos Lacerda, jornalista e deputado pela UDN, prega abertamente um golpe: o adiamento das eleições marcadas para 3 de outubro de 1955. Em seu jornal, a Tribuna da Imprensa, multiplicam-se artigos e editoriais de apoio à tese, escreve Carlos Chagas em O Brasil sem retoque, 1808-1964: A História contada por jornais e jornalistas (vol. 2).

Mídia apoia a proposta golpista

No Rio, a campanha golpista é apoia pelos jornais O Globo, O Jornal e Diário de Notícias. Em São Paulo, pelo O Estado de S.Paulo. A TV Tupi, de Assis Chateaubriand, a TV Rio e a TV Record, de Paulo Machado de Carvalho e Pipa Amaral, engrossam o coro. Assim como a Rádio Globo, franqueada à pregação lacerdista.

Qual é a tese da feroz batalha contra JK? Palavras de Chagas:

“Lacerda encabeçava a subversão explícita sustentando a necessidade de ser estabelecido um regime de emergência, um governo-tampão, para ele capaz de ‘desintoxicar o povo inoculado pelo vírus da demagogia getulista’.”

Lacerda escreve na Tribuna da Imprensa: “Kubitschek não será candidato; se for, não será eleito; se for eleito, não tomará posse, se tomar posse, não governará”. Para aumentar um pouco a confusão, o governador de São Paulo, Jânio Quadros, ensaia sair candidato.

Mas JK é eleito em 3 de outubro. Com 36% dos votos válidos. Maioria relativa. A oposição a ele agita novamente (já o havia feito na eleição de Getúlio, em 1950) a tese da maioria absoluta, que seria necessária para sagrar o presidente. Mas isso não está escrito nem na Constituição, nem em qualquer legislação infraconstitucional.

A crise está aberta. Os ministros da Marinha e da Aeronáutica querem anular a eleição com base no argumento de que comunistas haviam votado em JK. Como não era possível separar os votos do eleitorado vermelho, a solução seria anular tudo.

A provocação do coronel

Um coronel, Jurandir Bizarria Mamede, faz no enterro do general Canrobert Pereira da Costa, em 1 de novembro, um discurso a favor do golpe para impedir a posse de JK. É uma afronta ao ministro da Guerra. O general Lott quer punir Mamede, mas este serve no Estado-Maior das Forças Armadas, subordinado à Presidência da República. Lott terá que pedir licença a Café Filho para punir o coronel.

No dia 3, Café Filho tem um infarto, verdadeiro ou fingido, e baixa ao hospital. Assume o segundo na linha de sucessão, o presidente da Câmara dos Deputados, Carlos Luz, do PSD mineiro, mas a favor do golpe. No dia 10, ele nega a Lott a licença para punir Mamede. Lott pede demissão e quer marcar imediatamente a posse do sucessor, já escolhido por Luz, o general Álvaro Fiúza de Castro, do pelotão golpista. Mas Luz diz que pode ser no dia seguinte.

À noite, aconselhado pelo comandante da 1ª Região Militar, general Odílio Denys, Lott decide depor Carlos Luz. Na madrugada de 11 de novembro, o Exército cerca instalações da Marinha e da Aeronáutica no país inteiro e cerca o Palácio do Catete, sede da Presidência da República. Carlos Luz foge num navio de guerra. Tenta apoio em São Paulo, mas as forças do Exército leais a Lott dominam a situação no território paulista . O navio volta para o Rio.

Redações censuradas

Foi golpe, sim: Lott e seus auxiliares mandam coronéis para as redações censurar os jornais. Proibido dar notícia a favor dos golpistas anti-Juscelino.

No decorrer do dia 11, o Congresso Nacional vota o impedimento de Luz e dá posse ao terceiro na linha sucessória, o presidente do Senado, Nereu Ramos.

Café Filho sai do hospital e diz que quer reassumir o cargo. Seu apartamento em Copacabana é cercado por tropas do Exército, que ocupam várias ruas adjacentes. É dada a ordem: ninguém entra, ninguém sai. No dia 22, o Congresso vota o impedimento de Café Filho. O STF recusa um mandado de segurança contra a decisão impetrado pelo ministro da Justiça de Café Filho, Prado Kelly.

Nereu Ramos pede a decretação do estado de sítio, que só será levantado após a posse de Kubitschek, em 31 de janeiro de 1956. E o Brasil vive feliz por cinco anos. Depois vem Jânio Quadros, a renúncia, o parlamentarismo, João Goulart... Até que os golpistas de 1954-55 conseguem ganhar a parada, com total apoio dos mesmos jornais que hoje criticam a solução venezuelana. Em 1964, começam vinte anos de regime militar, cujas marcas estão aí.

Fonte: Observatório da Imprensa

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