domingo, 27 de janeiro de 2013

O apartidarismo no Brasil - Gaudêncio Torquato*

A pesquisa do Ibope, solicitada por este jornal, dando conta de que, ao final de 2012, 56% dos brasileiros não tinham nenhuma preferência partidária é mais um atestado de aversão da sociedade ao nosso modelo político. Não se trata, como se pode apressadamente concluir, de o desinteresse pela política ter declinado desde 1988, quando apenas 38% alegavam desinteresse por alguma sigla. Uma coisa é abjeção à geleia partidária, fruto de um jogo político mais embaciado, outra é a expansão da cidadania ativa, que se manifesta no engajamento do cidadão no processo político. Não há contradição entre as hipóteses.

O distanciamento entre a esfera social e a constelação partidária é, de certa forma, consequência do ativismo de núcleos que se organizam em defesa de interesses. Igualdade de gêneros, demandas de categorias profissionais, regulamentação de direitos de setores no escopo da Constituição de 88 e, nos últimos tempos, aceso debate sobre temas controversos e de impacto - aborto, eutanásia, experiências com células-tronco embrionárias, união civil de pessoas do mesmo sexo, descriminação das drogas - têm contribuído para adensar o engajamento político da sociedade. Ou seja, o discurso social eleva-se na esteira de maior participação política de grupos (cidadania ativa), enquanto a vida partidária se "uniformiza no cinzento", para usar imagem do sociólogo Roger-Gérard Schwartzenberg. Esse é o vácuo que o corpo político teima em não enxergar. Vemos, de um lado, o pulsar da vida social, energias criadoras em busca de avanços na modelagem do bem-estar comunitário, e, de outro, uma engrenagem partidária que não acompanha os desafios da modernidade.

É fato que a debilidade de partidos, aqui e alhures, é consequência de fenômenos que, ao longo das últimas três décadas, abalam os sistemas políticos, entre os quais o declínio das ideologias, o desinteresse de eleitores, a perda de poder dos Parlamentos e o enfraquecimento das oposições. Tudo isso decorre do arrefecimento de antagonismos de classes, característica da era da expansão econômica. Há, pois, um imenso arco de vetores a explicar a fragilidade dos atores partidários no cenário mundial. Se a pasteurização das siglas, todas assemelhadas, ganha mais densidade entre nós, é porque elas não têm sabido canalizar as aspirações sociais e promover a mudança em práticas e costumes.

Mas o que podemos ver, ao longo de nossa História, são partidos com fortes definições doutrinárias. Recorde-se a UDN, nascida em 1945, congregando a alta burguesia e a classe média urbana, identificada com as elites econômicas, apego ao moralismo, defesa do capital estrangeiro e da iniciativa privada. Rivalizando com ela, o velho PSD, cuja identificação com os grandes proprietários rurais lhe conferia feição ultraconservadora e de trincheira getulista. Ou mesmo o PTB, fundado sob inspiração do Partido Trabalhista inglês, reunindo operários fabris e lideranças sindicais, sob o controle de Getúlio Vargas. Todos eram facilmente perceptíveis.

Voltando mais ao passado, em 1922 tínhamos o PCB, liderado por Luiz Carlos Prestes e vinculado à 3.ª Internacional Comunista, com sede em Moscou. Em 1932 via-se a Ação Integralista Brasileira, inspirada no movimento fascista italiano e na Falange Espanhola, sob o comando de Plínio Salgado. Ambos tinham como meta a deposição do regime getulista. Proibidos os partidos durante o Estado Novo, voltaram à vida institucional em 1945, quando a política passou a conviver com a polarização entre UDN (antigetulista) e PSD-PTB (getulistas).

Os mais velhos se lembram dos tempos heroicos do MDB, criado em 1966, que ganhou prestígio e admiração ao se firmar como legenda de oposição à ditadura militar. O partido colecionou grandes derrotas até 1974, quando lhe coube ocupar quase três quartos das vagas em disputa para o Senado e duplicar sua bancada na Câmara dos Deputados. Ganhando um P em 1980, o partido foi melhorando o desempenho até se transformar no ancoradouro das aspirações sociais. No governo Sarney, em novembro de 1986 atingiu o clímax de sua história política, elegendo 22 governadores - só foi derrotado em Sergipe. O que aconteceu com o PMDB, que ainda é o maior partido brasileiro? E com o PT, fundado em 1980 sob a inspiração da mudança política e canalizando expectativas das massas marginalizadas? A pesquisa Ibope mostra que ainda é o partido mais popular no País, com 24% da preferência dos eleitores, mas também o que mais perdeu prestígio - em março de 2010 tinha a preferência de 33%.

O que explica o descolamento de simpatizantes das siglas que os abrigavam? A par do declínio dos mecanismos clássicos da política e da expansão econômica, que desmobilizam as massas, o que se observa é a pulverização de siglas. Como mosaicos na parede, fica difícil distinguir características e diferenças, mesmo em partidos estruturados de maneira vertical, como o PT, que organizam discursos, realizam congressos, obedecem à hierarquia e dão obrigações à militância.

Dá para acreditar numa aliança pela moralidade entre PSOL e DEM, o primeiro identificado com um ponto, à esquerda, e o segundo, com um contraponto, à direita? Pois essa parceria foi feita na última eleição para a prefeitura de Macapá. E a imagem de vestal que até há pouco tempo o PT usava para se mostrar diferente no espectro partidário? Todos os grandes e médios partidos foram chamuscados por fogueiras formadas pela lenha de escândalos, malversações e desvios de conduta.

Ademais, as demandas sociais batem cada vez mais à porta dos Executivos e de seus tecnocratas. A representação política já não tem a força de outrora para realizar compromissos com parcelas da sociedade. A tosca feição partidária tolhe o ânimo social. O que explica a tendência de expansão do apartidarismo no País.

* Jornalista, professor titular da USP.

Fonte: O Estado de S. Paulo

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