domingo, 31 de março de 2013

Passado e verdade - Tereza Cruvinel

Dilma preencheu um vazio ao criar a Comissão da Verdade, mas os resultados tímidos até agora obtidos têm a ver com as escolhas que ela fez. Especialmente com a composição e com a falta de hierarquia no colegiado

No tempo da ditadura, em dias como o de hoje, os comandos militares festejavam o aniversário do golpe que chamavam de Revolução Redentora de 1964 e emitiam uma Ordem do Dia. Os que estavam do outro lado faziam verdadeira exegese do texto, como quem busca no oráculo resposta para a angústia crucial: os sinais são de retrocesso e endurecimento ou de alguma luz no túnel escuro? Mesmo na democracia a Ordem do Dia continuou sendo emitida para saudar, em linguagem enviesada e cada vez mais tímida, o aniversário do golpe. Pela primeira vez este ano, por ordem da presidente e do ministro da Defesa, não foi divulgada. Os clubes militares, entretanto, divulgaram nota assinada por seus dirigentes da reserva, atacando os dirigentes da Comissão da Verdade, que chamaram de “totalitários”. Sabe-se, por outro lado, que a presidente Dilma está insatisfeita com os resultados tímidos dos trabalhos silenciosos da comissão.

A nota dos clubes militares é afronta a uma comissão criada por lei para inventariar os crimes e as violações ocorridas durante a ditadura, embora não tenha qualquer poder jurídico para denunciar ou punir. “Não venham, agora, os democratas arrivistas, arautos da mentira, pretender dar lições de democracia. Disfarçados de democratas, continuam a ser os totalitários de sempre”, diz a nota. Mas seus signatários são da reserva e os clubes são instituições privadas, não havendo o que a presidente possa fazer. A democracia garante a liberdade de expressão até mesmo aos que a violaram.

Já em relação à Comissão da Verdade, Dilma tem razão, mas tem responsabilidade pelo que está ocorrendo. Ao instituir a Comissão, no ano passado, ela supriu um vazio incompreensível. A ditadura no Brasil não foi um fato isolado na América Latina. No mundo em duas cores da Guerra Fria, em quase todo o subcontinente a ordem constitucional foi rompida e deu lugar a regimes militares autoritários, que suprimiram as garantias e liberdades, perseguiram, prenderam, mataram e desapareceram com os que resistiram. Passadas duas décadas das transições, que foram quase simultâneas, só o Brasil não havia instituído uma Comissão da Verdade, ao contrário do que já ocorrera na Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Peru, El Salvador e tantos outros. Foi o que disse o próprio representante da ONU, na solenidade de instalação da Comissão, no ano passado, para a qual Dilma teve a delicadeza republicana de chamar todos os ex-presidentes do Brasil democrático.

A sua queixa agora é a mesma das famílias das vítimas e das entidades que lutaram pela verdade e por seu reconhecimento, como já registrado por esta coluna. Ela gostaria que a Comissão estivesse contribuindo de forma mais efetiva para o envolvimento da sociedade com este resgate da História. Que os depoimentos fossem abertos, que houvesse mais sessões públicas sobre os episódios que estão na agenda, que mais documentos estivessem sendo disponibilizados, e não apenas os textos de um integrante, o procurador Claudio Fonteles, aparentemente o mais ativo deles. A partir de amanhã, os documentos do DOPS paulista estarão disponíveis na Internet, mas esta iniciativa é externa à Comissão. Muitos outros arquivos poderiam estar abertos e acessíveis. Uma comissão como esta deveria dar pelo menos um “briefing” semanal sobre seus trabalhos, mas os jornalistas precisam garimpar informações com dificuldade. Sabe-se que Fonteles foi voto vencido na decisão entre divulgar as conclusões e descobertas durante os trabalhos ou apenas ao final dos trabalhos, em maio do ano que vem. Assim, o relatório final produzirá um livro denso, que alguns vão ler. A verdade terá chegado aos que a conheciam parcialmente, deixando de alcançar os que nunca souberam de fato o que foi a ditadura, para que valorizem a democracia.

Mas esta atuação morna da Comissão, que parece agir com os cuidados exigidos no passado que ela investiga, tem a ver com escolhas que a presidente fez ao instituí-la. Os integrantes se queixam da ausência crescente do advogado José Paulo Cavalcante e do ministro Gilson Dipp, do STJ, que enfrenta problemas de saúde. Se têm limitações de qualquer ordem, devem ser substituídos. Mas a composição, em si, nunca convenceu. Buscando pluralidade e imparcialidade, Dilma deixou de incluir representantes das famílias e das entidades que lutam pela verdade, dos advogados que tiveram coragem de defender as vítimas e dos outros poderes, que poderiam estar dando sua contribuição. Falta a representação da Igreja Católica e de outras que ficaram ao lado da luz. Ademais, um colegiado sem hierarquia não pode funcionar bem. Todas as comissões do continente tiveram presidente e relator. A da Argentina, que foi talvez a mais produtiva de todas, teve na presidência a força e o destemor do escritor Ernesto Sábato. A nossa funciona em sistema de rodízio. Todos são iguais e se revezam na coordenação a cada seis meses. Assim, continuaremos mesmo a ouvir as vozes tenebrosas do passado, que só se calarão quando toda a sociedade souber o que fizeram, como fizeram, por que fizeram. E souber, inclusive, que apesar do que fizeram não pagarão por isso, pois este foi o preço da transição.

Feliz Páscoa

Páscoa, Pessach, Passagem. Bento XVI se foi no carnaval. O papa Francisco revelou-se inteiro na semana santa, oferecendo ao mundo exemplos de fé e de humildade. Feliz Páscoa a todos.

Fonte: Correio Braziliense

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