sábado, 2 de março de 2013

Uma carta em defesa da REDE- Luiz Eduardo Soares

Esta carta foi gentilmente publicada pelo destinatário, Merval Pereira, quase na íntegra. em sua coluna de O Globo, em 27 de fevereiro de 2013. Sou grato à sua gentileza e ao espírito democrático.

Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 2013.

Caro Merval,

leio sempre com interesse sua coluna e, quando ela tematiza questões que me mobilizam mais diretamente, sinto impulso de lhe escrever para trocar ideias. Sina de colunista: você está exposto a leitores chatos como eu. Em geral, guardo o impulso para preservá-lo. Imagino que muitos não agirão com a mesma prudência... Hoje, não me contenho, porque creio poder contribuir para um esclarecimento relevante, considerando-se a importância de sua opinião na formação da consciência pública. Tomo a liberdade, portanto, de submeter à sua apreciação um par de reflexões sobre o novo partido que se está formando, sob a liderança de Marina, com o nome inusitado de REDE. Meus comentários não são os do cientista político ou do antropólogo, mas do cidadão. Não são neutros, porque estou envolvido nesse processo. Por outro lado, não falo em nome de Marina ou da REDE, mas em nome exclusivamente pessoal.


Concordo inteiramente com você quanto ao equívoco de movimentos que pretendam mudar a política assumindo identidades e práticas antipolíticas. Seu destino é o reforço da dinâmica que corrói a legitimidade das instituições democráticas, o esvaziamento da confiança popular, o esgarçamento do instituto da representação e, portanto, o agravamento da degradação institucional que se desejaria reverter. Movimentos antipolíticos para transformar a política produzem efeitos perversos, não antecipados, contrários às intenções dos protagonistas da iniciativa bem intencionada. São avessos à democracia, apesar da disposição de aprimorá-la e aprofundá-la. A história está repleta de exemplos. Os movimentos antipolíticos costumam perder-se em um voluntarismo estéril. Voluntarismo sem prumo, sem rumo, sem vertebração, que acende emoções respeitáveis e evoca valores morais em si mesmos dignos, mas desperdiça toda essa energia com sua retórica vazia, suas bandeiras negativas, suas ideias fragmentárias e refratárias ao debate sobre alternativas realistas e objetivas.

Nada disso corresponde às motivações e aos compromissos que estão gestando o novo partido. A REDE dispõe-se a jogar o jogo democrático, parlamentar e eleitoral com absoluta fidelidade aos marcos legais. Tem plena consciência de que mudanças têm de ser promovidas por meios constitucionais e sabe que é imensa a complexidade desse processo. Distante das crenças doutrinárias e dogmáticas, distante dos messianismos sectários e insurrecionais, a REDE confia na via democrática para qualquer transformação da sociedade e quer ser leal ao pacto constitucional cuja construção custou ao país tantas vidas e sacrifícios. A democracia é um patrimônio inestimável. Esse reconhecimento, caro Merval, não significa que concordemos com o modo pelo qual os partidos têm se portado, muitas vezes deixando de extrair o potencial virtuoso das instituições democráticas. Com frequência, os partidos têm se servido das instituições para instaurar jogos de cartas marcadas que servem pouco aos interesses públicos e apenas alimentam projetos de poder de determinados grupos políticos e segmentos sociais. Ser realista, como você próprio já disse, não significa resignar-se a reproduzir as dinâmicas em curso e a aceitar o espetáculo degradante que as lideranças políticas têm oferecido. Se, eventualmente, a REDE obtiver vitórias eleitorais e alcançar o poder, ver-se-á obrigada a repetir o roteiro lamentável das negociatas entre o Executivo e o Legislativo? Não há espaço para negociações mais democráticas, transparentes, programaticamente concebidas, decentemente articuladas? Claro que há. A democracia nos faculta distintas vias de ação. A postura não pode ser o desprezo pelo Congresso, cujo papel é indispensável para a democracia, por maiores que sejam suas deficiências. Por outro lado, a postura tampouco pode ser a da aceitação das práticas medíocres e orientadas por interesses subalternos, porque, sob a aparência de valorizar a instituição, esse caminho corrói as bases da confiança popular, da eficiência e da legitimidade. Por esses motivos, posso afirmar que antipolítica é a prática que hoje predomina, traindo a dignidade dessa palavra, que merece ser cultivada como eixo civilizatório: democracia.

Para que a REDE tenha densidade suficiente para resistir à força gravitacional da antipolítica, hoje vigente nas instituições políticas, ela precisa fazer o que os partidos deixaram de fazer: constituir-se em conexão profunda e permanente com a pulsação criativa da sociedade, com a participação social, não para reduzir-se a sua extensão — o que negaria a autonomia relativa da política, que envolve múltiplas mediações —, mas para municiar-se de anticorpos à antipolítica. Mandeville nos ensinou que não devemos edificar instituições pressupondo apenas a virtude humana, tão escassa. Sua lição demonstrou que é preciso construir instituições capazes de transformar vícios privados em virtudes públicas. Por isso, a REDE pretende experimentar novas regras de funcionamento, antecipando-se a eventuais reformas institucionais e as suscitando. Daí a limitação das reeleições, as restrições no acesso a apoios financeiros, a determinação de que se divulguem as doações on line em tempo real — e muitas outras novidades. Talvez elas sejam excessivas ou inadequadas. O tempo vai mostrar. Mas elas funcionarão como contraponto destinado a provocar reflexões, revisões e debate público. Elas ajudarão a mostrar que a política pode ser diferente e que há um campo de experimentação possível, perfeitamente legal, legítimo e responsável. As instituições não brotaram da natureza. Foram inventadas pelo engenho humano. Nascem e morrem, transformando-se. Talvez a REDE possa produzir uma dinâmica de mudanças significativas não para arruinar a democracia ou a política democrática, mas para restituir-lhes vitalidade e fidelidade aos princípios que inspiraram sua origem.

A REDE não reúne pessoas melhores do que ninguém. Tampouco foi criada para servir de trampolim a uma candidatura presidencial. Pode dar certo ou não. Mas me parece saudável que haja quem se disponha a arriscar-se a cometer erros novos. Bem vindos os novos erros, pois os antigos são conhecidos e têm sido devastadores.

Grande abraço,

Luiz Eduardo Soares

Fonte: Gramsci e o Brasil

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