sexta-feira, 5 de abril de 2013

Escravos domésticos e rurais em disputa - Maria Cristina Fernandes

O deputado federal Carlos Bezerra (PMDB-MT) é o autor da Proposta de Emenda Constitucional que igualou os direitos dos empregados domésticos aos trabalhadores em geral.

Com ele votaram 347 parlamentares. Opuseram-se os deputados Jair Bolsonaro (DEM-RJ) e Vanderlei Siraque (PT-SP). O presidente do Senado, Renan Calheiros, comemorou o feito, capitaneado por seu partido, em rede nacional de rádio e televisão.

O deputado já previa a quase unanimidade entre seus pares. "É um assunto que inibe as pessoas", diz. Elogia dois petistas que o ajudaram a passar o projeto à frente de outras 150 PECs, o ex-presidente da Câmara Marco Maia (RS) e o presidente da Comissão de Constituição e Justiça, João Paulo Cunha (SP), mas diz que chegou a temer a interferência do governo federal.

Autor da PEC das domésticas se absteve na do trabalho escravo

Conta que a comissão criada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para cuidar do assunto acabou abortada por interferência da área econômica, que temia desemprego.

Bezerra já foi prefeito, deputado estadual, senador e governador do seu Estado, mas diz que nunca fez nada tão importante quanto esta lei.

Há menos de um ano, o deputado participou de outra sessão muito relevante para os direitos dos trabalhadores. No dia 22 de maio de 2012, a Câmara dos Deputados votou a PEC que confisca terra em que seja constatado trabalho escravo.

O deputado Carlos Bezerra se absteve da votação: "Sou totalmente a favor do fim do trabalho escravo, mas não me lembro como votei".

Ex-prefeito de Rondonópolis, na pujante fronteira agrícola do Centro-Oeste, o deputado diz não ter sido pressionado por sua base eleitoral contra a proposta. Tampouco por seus familiares.

No ano anterior à votação, uma equipe de procuradores e do Ministério do Trabalho autuou a fazenda de um sobrinho do deputado por abrigar 12 trabalhadores em condições degradantes.

Bezerra diz não ter qualquer relação com a fazenda do sobrinho. "Minha base eleitoral é de trabalhadores", assegura. São ilações da mesma ordem, diz, que o tornaram réu no Supremo Tribunal Federal. Sua gestão na presidência do INSS é acusada de desviar recursos.

Nenhuma dessas digitais diminui a importância da PEC das Domésticas. É o primeiro passo para o Brasil colocar na mesma ordem de grandeza duas estatísticas que resumem seu atraso social: o país que tem 3% da população mundial abriga 13% do total de trabalhadores domésticos do planeta.

O envolvimento do deputado e de seu partido na tramitação dessa proposta revela os meandros das medidas que mudam a vida do país. A PEC das Domésticas foi aprovada em três anos porque a classe média tradicional não tem, no Congresso, a mesma interlocução política desfrutada pelos ruralistas. Há 14 anos seguram a aprovação da proposta que pune a contratação de serviços prestados em situação degradante.

Ao se abster na votação da PEC do Trabalho Escravo, o deputado teve a companhia de outros 24. A proposta foi aprovada na Câmara com 360 votos e teve a oposição de 29 parlamentares. PMDB e PSD foram os partidos que mais se opuseram à proposta.

Cada um deu sete votos contra. Foram também os partidos cujos parlamentares mais se abstiveram. Além de Bezerra, outros seis pemedebistas, apesar de presentes à sessão, preferiram não se comprometer com o resultado da votação.

A PEC do Trabalho Escravo começou a tramitar 11 anos antes da proposta das Domésticas. Conviveu, durante todo o governo Lula, com o poder crescente dos ruralistas e só na gestão Dilma Rousseff arregimentou maioria para passar na Câmara.

No Senado, onde peleja para ser aprovada, enfrenta a aguerrida oposição da senadora Kátia Abreu (PSD-TO), presidente da Confederação Nacional da Agricultura e hoje um dos principais esteios de Dilma Rousseff no agronegócio.

Se o PMDB viu na PEC das Domésticas uma oportunidade para reverter o dano na imagem do partido causado pela exposição dos malfeitos de suas principais lideranças, melhor para o país. As trapaças pemedebistas continuam por aí, mas o Brasil ganhou uma legislação capaz de sacolejar as entranhas de sua divisão social. Vai que assim o PT se mexe para aprovar a PEC do Trabalho Escravo e fazer jus à segunda letra de sua sigla.

As empregadas domésticas têm acomodado as insatisfações da classe média tradicional com sua persistente perda de posição na renda do país. São fartas as estatísticas que mostram avanços salariais maiores para quem ganha menos.

É isso que tem, em grande parte, inflacionado o custo dos serviços prestados por esses assalariados da base da pirâmide. Os serviços prestados por esses trabalhadores, quase tão caros quanto os de países ricos, são consumidos por uma classe média que está com sua renda achatada, não se reconhece nos seus companheiros de fila da alfândega e vê as chances de seu filho entrar numa universidade pública reduzidas pelo sistema de cotas, outra medida recentemente aprovada pelo Congresso.

Está dada, assim, a equação de uma tensão social crescente. Mas talvez seja essa a senha para um envolvimento da classe média tradicional com a política que extrapole a histeria anticorrupção.

A jornada de trabalho de pais que nasceram na classe média também pode ser extenuante e costuma ser resolvida com a contratação de empregados domésticos. Se o orçamento não comportar e os sindicatos continuarem a ser vistos como lugar de peão, algum canal para verbalizar essa insatisfação há de ser encontrado.

Não dá para imaginar que esse achatamento no topo da pirâmide leve escolas, transportes e hospitais públicos a se encherem de classe média de uma hora para outra, mas a ampliação do uso desses serviços por quem tem um outro padrão de referência pode levar a uma maior cobrança por melhoria.

Quem resistir há de dar sustância a uma direita que não se envergonhe de mostrar a cara. Do outro lado estarão aqueles que aceitam pagar o preço da mudança social. No mercado partidário, vencerá quem, além de oferecer o maior desconto, entregar a mercadoria.

Fonte: Valor Econômico

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