sexta-feira, 24 de maio de 2013

A mentirinha de Joaquim - Maria Cristina Fernandes

Cada um tem um Joaquim Barbosa para chamar de seu. Para os defensores das minorias e das liberdades individuais, o presidente do Supremo Tribunal Federal fez diferença no avanço das políticas de cotas, do reconhecimento do casamento gay e do direito ao aborto de anencéfalos.

Com o mensalão, Barbosa se transformaria no ícone da luta anticorrupção. Espíritos republicanos, rebelados contra os conluios do poder, também se regozijam com o enquadramento de juízes e advogados.

Até quem não aguenta mais abrir os jornais, encontrou em Barbosa um parceiro de enfado com a toada conservadora.

Desde que adquiriu protagonismo no Supremo, Barbosa também conquistou outra tribo, a dos que veem na inconsistência programática dos partidos e na prevalência do Executivo sobre o Congresso a fonte de todos os males.

O poder de agenda, mundo afora, é do Executivo

É uma tribo multipartidária, com franca ressonância na opinião pública. Há pouco tempo pautavam o debate público pela necessidade de dotar o país de governabilidade. Viam-na ameaçada pelos partidos. Agora deram uma guinada. A queixa é de que há governo demais e partidos de menos. O Brasil pouco mudou para justificar tantas flutuações do debate. A não ser pelo partido que governa.

Não se pode acusar Barbosa de servir a interesses partidários. Até os mensaleiros sabem disso. É um iconoclasta vocacionado a sacudir um país que sempre muda para manter as coisas no mesmo lugar. Nem que para isso se valha do autoritarismo que deu lastro à imobilidade.

Barbosa já se confessou isolado no enfrentamento dos embargos dos mensalão. Teme que ponham o julgamento a perder. Não age apenas como um magistrado indignado frente a uma sentença questionada. É o negro mais bem sucedido nas hostes do poder. Faz companhia ao operário e à mulher. Nunca-na-história-deste-país houve um trio desses, mas a excepcionalidade para por aí.

Na aula que deu esta semana em Brasília Barbosa disse, em suporte a sua tese de debilidade excepcional do Legislativo, que as propostas de iniciativa do Congresso não devem chegar a 15%, quando deveriam ser de 90%, o que fomentaria partidos de "mentirinha".
Semeada a polêmica, ponderou que falava como professor, não como presidente da Corte. No cargo que exerce, já deu demonstrações de que, pelo ideal da igualdade, deixa em segundo plano os ritos da democracia. Como professor, além dos ritos, despreza os fatos.

Urge salvar os alunos de Barbosa. Suas contas são de mentirinha. O Executivo tem o poder de agenda sobre a maior parte dos legislativos no mundo.

Desde o século passado assiste-se a uma crescente perda de autonomia dos parlamentares frente aos governos. Com o fim do voto censitário o eleitorado ampliou-se, crescendo a disputa no Executivo por sua conquista.

As duas grandes guerras mundiais exacerbaram essa concentração de poderes. A depressão que marcou o interregno dos conflitos demandou a manutenção de prerrogativas dos gabinetes europeus. O retorno aos tempos de paz não completou o caminho de volta a uma maior autonomia legislativa.

As grandes crises financeiras que marcam o início deste século tampouco contribuíram para um maior poder de agenda dos legisladores. Tanto a taxa de sucesso dos governos em fazer aprovar seus projetos quanto a dominância de iniciativas do Executivo na pauta aprovada rondam os 90%. É o contrário do que ensinou o presidente do Supremo.

O Banco Mundial compila dados, artigos e levantamentos sobre o poder de agenda do Executivo no planeta. Lê-se: "O Parlamento é um corpo que reage às medidas do Executivo. Esse contexto de Executivo forte e Parlamento reativo limita a modernização sem mudanças constitucionais sísmicas". A frase poderia ter ser pronunciada por Barbosa ou por qualquer liderança parlamentar sobre a relacao entre o Planalto e o Congresso, mas refere-se ao Reino Unido, berço da democracia representativa.

É possível que Barbosa tivesse em mente os Estados Unidos quando menosprezou o poder dos partidos e do Congresso.

Os americanos têm, de fato, o Legislativo mais poderoso do planeta. Os presidentes dispõem da prerrogativa de enviar o Orçamento, vetar as propostas lá aprovadas, controlar sua execução e nomear os integrantes do governo. O presidente americano não tem o poder de enviar projetos de lei ao Congresso, são suas lideranças parlamentares que o fazem. Cumpre orçamentos impositivos e não dispõe de instrumentos como as medidas provisórias brasileiras.

Essa distribuição de poderes não foi capaz de produzir uma legislação capaz de evitar que o sistema financeiro enfiasse o país na maior crise de sua história. Passados três anos da aprovação das leis que regulamentam o setor bancário e limitam as operações especulativas, Congresso e Executivo americanos têm sido incapazes de fazer valer sua regulamentação.

Em entrevista a Sérgio Lamucci, do Valor (15/5/2013), Paul Volcker, ex-presidente do banco central americano e inspirador da lei, disse ter vergonha dos poderes institucionais do seu país. Se o Brasil exportasse suas lideranças que se orgulham da democracia americana poderia não resolver o déficit na balança comercial, mas talvez ajudasse os brasileiros a olhar para seu próprio país sem mistificações.

No Brasil, o Executivo, de fato, monopoliza a iniciativa legislativa, mas o faz com base em maiorias legislativas formadas por parlamentares eleitos em disputas competitivas e que se comportam com disciplinas partidárias que não destoam do padrão de outras democracias.

Qualquer um tem o direito de não gostar do resultado, mas os instrumentos que caracterizam a concentração da iniciativa foram conferidos pela Constituição de 1988, aquela que o ministro Barbosa tem por missão zelar.

Duas leituras, data venia, hão de enriquecer as referências bibliográficas dos seus alunos:

 "Legislatures and Oversight", Riccardo Pelizzo and Rick Stapenhurst
(www.siteresources.worldbank.org/EXTPARLIAMENTARIANS/Resources/Legislatures_and _Oversight.pdf) e "Democracia no Brasil", Fernando Limongi (scielo.br/pdf/nec/n76/02.pdf)

Fonte: Valor Econômico

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