segunda-feira, 6 de maio de 2013

Páginas viradas - Wilson Figueiredo

O arredondamento, ano que vem, dos 50 transcorridos desde as tensões sociais e políticos de 1964, vai oferecer a oportunidade de ser reavaliado o que aconteceu e o que deixou de acontecer. Claro, de outros pontos de vista, mas dificilmente disporá de espaço no torvelinho da sucessão presidencial. Não haverá como rearrumar o passado com outros personagens. Os figurantes que modelaram os acontecimentos estão todos mortos e não têm mais nada a ver com o que se passou depois. Os vivos se voltam para o presente e se ocupam do futuro com prioridade.

O documentário cinematográfico O dia que durou 21 anos teve como público os sobreviventes de um tempo já incorporado pela História, mas ficou para trás e não diz respeito às circunstâncias relacionadas com duas gerações já em idade adulta e com outras prioridades. Não há novidade nos documentos relativos às impressões digitais de Tio Sam nas providências oferecidas oficialmente pelo governo americano a respeito de material bélico, navios e tropa. A eventualidade de perturbação da ordem pública com característica de guerra civil não passou de hipótese. Outro filme — Jango — igualmente documentário, também teve contribuição de alcance político valioso. O gênero se manteve sempre em cartaz. E pode fazer mais.

A eventualidade de perturbação da ordem pública com característica de guerra civil não passou de hipótese

A proposta de abertura das discussões sobre o que ficou para trás, com a retomada da via democrática em 1985, perdeu prioridade política. Passou ao domínio da historiografia. A própria Constituição de 1946 foi sepultada sem as honras que a louvaram em vão, enquanto esteve em vigor. Na franquia que admitia, por exemplo, a eleição autônoma do vice-presidente por outra legenda que não a do candidato a presidente que alcançava o poder, havia mais imprudência do que democracia. Aí se enraizou a questão João Goulart, eleito como vice de um presidente com o qual nada tinha em comum. Pelo contrário. Era de outra vertente política e tinha contas antigas a acertar com a oposição. Que pagava na mesma moeda.

No caso específico, Jânio Quadros trouxe a tiracolo um vice que representava politicamente o oposto do que ele próprio significava: Jango tinha a ver exclusivamente com o saldo político de Getulio Vargas, incompatível com a oposição histórica que, na quarta e última eleição presidencial sob a Constituição de 46, chegou ao poder pelo voto direto. Eram politicamente incompatíveis o presidente Jânio Quadros e o vice João Goulart, reunidos no mesmo mandato.

O fato é que, com o passar do tempo, o acerto de contas se tornou secundário. O que a História não resolve, o tempo acomoda. Vencedores e vencidos saem de cena e cedem espaço a outros vencidos e a vencedores. João Goulart levou com ele a razão que foi entendida à época como hesitação (ou falta de convicção) em ir às últimas — a guerra civil — para evitar a intervenção militar na prolongada deterioração da ordem pública. Faltou a versão capaz de convencer os vencidos de que a renúncia do presidente da República pudesse ser proveitosa ao equilíbrio democrático e merecesse o reconhecimento público. Os premiados pelo acaso se animaram com a falta de resistência. E houve um toque de fatalidade histórica ainda não assimilado.

João Goulart, mais de uma vez, deixou claro que nada o levaria a precipitar a guerra civil

No livro Baioneta calada e baioneta falada, que acaba de ser editado e no qual dá seu testemunho, o autor Genival Tourinho, que foi deputado e teve vida política ativa desde estudante, dá ênfase à final do que não ocorreu (depois do desentendimento entre Leonel Brizola e João Goulart). Genival tinha trânsito pessoal entre os mais próximos de Goulart. E frequentava Leonel Brizola, desde a primeira batalha pela Legalidade. A tensão política se intensificou e, na etapa decisiva, Brizola se excedeu na divergência e, ao exortar o cunhado a ir à luta, violou o limite da questão política. Criou a questão pessoal. Nem antes nem depois, até o fim não mais se falaram.

João Goulart, mais de uma vez, deixou claro que nada o levaria a precipitar a guerra civil: ”Não quero derramar sangue de brasileiros”. Foi definitivo, ao se dirigir a Brizola: “Não insistas, por favor, porque não terás êxito”. Segundo Tourinho, foram inúteis todas as tentativas de reaproximá-los. Brizola fez em vão tentativas de reconciliação.

A iniciativa de reacender o debate sobre 64 (antes e depois), passado meio século, dificilmente irá além do programa denominado É tudo verdade, para acender debatesnum ano já invadido pela antecipação eleitoral: Goulart foi o herdeiro de Getulio Vargas e veio a pagar a conta deixada aberta pelo ex-ditador com a democracia, durante os oito anos do Estado Novo, e o custo adicional do suicídio, que amaldiçoou a oposição à época, até o fim da Constituição de 1946.

Fonte: Jornal do Brasil

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