sábado, 13 de julho de 2013

Cinema: Auguste, Jean e a arte da família Renoir

Ficção de Gilles Bourdos trata da relação pai/filho e proporciona grande papel para Michel Bouquet, que faz o pintor

Luiz Carlos Merten

São as mãos, deformadas pela artrite, que arrancam gemidos de dor ao velho Auguste Renoir. Mas há algo ainda mais doloroso para o grande artista, e que ele coloca em palavras - "A vida cotidiana da natureza é um sofrimento para o pintor que não consegue captá-la." Neste final de semana marcado pelo duelo entre dois blockbusters - O Homem de Aço versus O Cavaleiro Solitário, e o primeiro é melhor, como cinema, por mais movimentado e, eventualmente divertido que possa ser o segundo -, o cinéfilo, que já está sendo solicitado a acompanhar o Festival de Cinema Latinoamericano de São Paulo, não deve descuidar de outra estreia de ontem, e é justamente o Renoir de Gilles Bourdos.

No ano passado, em maio, o filme foi escolhido para encerrar - com beleza - a mostra Un Certain Regard, no Festival de Cannes. E eis que Renoir chega agora aos cinemas, num circuito pequeno, porque as salas estão tomadas pelos filmes grandes, e até grandes filmes, como o de Zach Snyder, que reinventa, impulsionado por um ator extraordinário - Henry Cavill -, a saga do herói criado por Roy Shuster e Jerry Siegel. Por falar em ator extraordinário, se se pode usar a definição para um jovem como Cavill, que adjetivo emprestar a Michel Bouquet, que faz Auguste Renoir? Genial?

Ele é, e o cinéfilo sabe disso. A associação de Bouquet com Claude Chabrol produziu grandes filmes, e nenhum é mais belo nem mais intenso do que A Mulher Infiel, de 1969. Bouquet faz agora o velho Renoir e se, fisicamente, ele não se assemelha tanto ao mestre impressionista, em matéria, sutileza e temperamento, a impressão é de ver na tela o próprio Auguste, no ato de criar. Ele está no apogeu de sua arte em Renoir, o filme, mas vive recluso na sua propriedade Collette's, em Cagnes, na Côte d'Azur. Ele pinta, e sofre - de dor nas mãos e também porque, mesmo para um grande impressionista, que busca o efeito fugaz da luz, sente que a natureza e o sol lhe escapam.

Toda a casa gira em torno dele, e Renoir, que amava retratar as mulheres, vive cercado delas. Elas o carregam, em procissão, da casa para o estúdio, atravessando o jardim. Renoir descobre uma modelo, e vira obsessão para ele tentar colocar na tela a maciez da pele dessa mulher. Justamente no período focado, seu filho Jean, que ainda não é o grande cineasta em que se transformou, foi ferido na guerra (a 1.ª), ganhou uma licença e vem buscar abrigo junto ao pai. A relação entre eles não é de antagonismo, mas também não é, menos ainda, calorosa. Auguste vive para sua pintura, é um déspota sem ter consciência disso.

Jean está descobrindo o cinema, essa nova arte, e de Cagnes - suas biografias registram isso - ele corre a Nice para ver as imagens em movimento. Na ficção do filme, embasada na realidade, a modelo do pai vira objeto de desejo do filho, e Jean vai fazer de Catherine Hessling, identificada como Andrée, a primeira musa de seu cinema. Só que o filme não é sobre o Renoir cineasta nem só sobre o Renoir pintor. É sobre ambos, sobre a relação entre pai e filho, o artista consagrado e outro que ainda vai ser. Um terceiro Renoir aparece brevemente. Chama-se Claude e será um grande fotógrafo.

Escritor e jornalista, Gilles Bourdos, que assina Renoir, é autor de uma obra pequena - em quantidade -, mas que já inclui seis títulos, entre curtas e longas. O primeiro curta, L'Éternelle Idole, é de 1989 e o primeiro longa, Disparus, surgiu quase dez anos depois, em 1998. É uma investigação histórica - e policial - sobre o desaparecimento do poeta trotskista Alfred Katz em Paris, em 1938. Bourdos já disse que gosta de histórias reais porque elas lhe dão uma base sólida para trabalhar sua ficção. É um diretor tradicional, mas não acadêmico. Gosta de temas fortes e/ou polêmicos (arte, família, política etc), que trabalha com pronunciado gosto estético. O admirável fotógrafo de Renoir é Mark Ping Bin Lee, dos filmes de Hou Hsiao Hisen e Wong Kar-wai. Você nunca mais verá um quadro de Auguste ou um filme de Jean sem se lembrar de pai e filho no filme de Bourdos.

Fonte: Caderno 2 / O Estado de S. Paulo

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