segunda-feira, 29 de julho de 2013

Voluntarismo inconsistente - Paulo R. Haddad *

Keynes dizia que, em época de crise, somos guiados, em grande parte, pelos fatos sobre os quais temos maior confiança, mesmo que eles sejam decididamente menos relevantes para as questões em debate do que outros fatos sobre os quais nosso conhecimento é vago e escasso. Essa atitude se torna propensa a induzir desastres no contexto em que uma economia se torna complexa e na qual as interdependências e transversibilidades no processo decisório passam a prevalecer sobre as soluções simplistas.

Não é difícil identificar as probabilidades de que esses desastres possam ocorrer em situações em que as decisões tomadas vão na direção contrária às regras fundamentais de acumulação e de operação do sistema econômico. Especificamente no caso brasileiro trata-se de confrontar as regras de uma economia mista de mercado que convive adequadamente com a intervenção governamental visando à estabilidade da economia, à melhor distribuição de renda e de riqueza, assim como à mitigação das externalidades negativas sobre os ecossistemas. Nesse tipo de economia, o sucesso da intervenção governamental depende da consistência técnica das decisões, assim como da qualidade de sua negociação política com os que ganham e com os que perdem com essas decisões.

Convencionalmente, admite-se que numa economia de mercado os preços exercem três funções na organização das atividades econômicas. Transmitem apenas a informação importante e somente para as pessoas que precisam conhecê-la. A intervenção governamental na economia não deveria, pois, cruzar essas linhas de transmissão, ampliando as incertezas, os ruídos e os riscos no processo de tomada de decisões dos agentes e protagonistas dos mercados.

De acordo com a segunda função, os preços proveem um incentivo para que se adotem os métodos de produção que são menos custosos e, portanto, para que se utilizem os recursos disponíveis nos propósitos mais valiosos para o conjunto da sociedade. Os instrumentos de intervenção servem para provocar ajustes na oferta e na procura de mercado, visando a corrigir as consequências de sua operação (poder de mercado, danos ecológicos, etc.).


A terceira função do sistema de preços determina quem obtém quanto da produção gerada, ou seja, a distribuição de renda. É aqui que a intervenção governamental adquire sua maior importância numa sociedade marcada historicamente pelas assimetrias e desigualdades de oportunidades entre famílias, grupos e classes sociais, regiões e segmentos produtivos.

Mas o processo de intervenção governamental não pode ocorrer num contexto de voluntarismo dos dirigentes públicos. Ou seja, quando assumem recorrentemente as crenças e as atitudes proposicionais de quem pensa modificar o curso dos acontecimentos apenas por seu alvedrio. Uma atitude que se torna mais equivocada quando se pensa também que ela pode ser respaldada e legitimada apenas por índices de popularidade.

Esse comportamento diretivo e autoritário comete dois erros básicos. O primeiro é destacado por Keynes. O principal objetivo da acumulação de capital ou de riqueza é produzir resultados ou resultados potenciais num período relativamente distante. O fato de que nosso conhecimento do futuro é flutuante, vago e incerto torna muito difícil ter uma visão mais clara e responsável de como se distribuem consistentemente as perdas e os danos de decisões casuísticas e pragmáticas sobre os grupos sociais no presente e no futuro.

O segundo equívoco de um voluntarismo recorrente como estilo de governo é apontado por Jean Ladriére. Numa sequência interminável de intervenções casuísticas de curto prazo, a lógica interna do sistema econômico torna os decisores públicos incapazes de superar sua própria condição se deixando conduzir pelas exigências que não cessam de nascer de suas próprias iniciativas. De curto em curto prazo, vão armando suas contradições e armadilhas das quais, muitas vezes, as portas de saída levam a resultados não esperados e ao desgaste político.

As novas teorias do crescimento econômico endógeno colocam em questão a dicotomia entre políticas de curto prazo e politicas de longo prazo. Não vale, pois, a regra pragmática: para problemas de curto prazo, soluções de curto prazo, com base na falsa interpretação do aforismo de que, no longo prazo, poderemos estar todos mortos. As teorias que buscam analisar as flutuações ou os ciclos reais de negócios mostram que estes podem ter uma influência poderosa no longo prazo.

Por exemplo: o governo federal expandiu o escopo e a abrangência das políticas sociais compensatórias como mecanismo privilegiado de política anticíclica de defesa dos níveis de renda e de emprego, sobrepondo-lhes cada vez mais benefícios e beneficiários. Essas ações compensatórias (Bolsa Família, previdência social, benefícios continuados, etc.) já financiam dramaticamente a sobrevida de quase 100 milhões de brasileiros. Há, por outro lado, o comprometimento dos recursos fiscais para investimentos de infraestrutura econômica indispensáveis para o crescimento no longo prazo. Comprometem-se, também, os recursos para financiar políticas públicas (educação de qualidade, serviços de saúde, transporte coletivo, reversão da decadência de áreas deprimidas, preservação, conservação e reabilitação de ecossistemas) visando a reduzir as desigualdades e assimetrias sociais, e não apenas os indicadores de pobreza. Comprometendo-se, enfim o desenvolvimento humano no longo prazo daqueles a quem pretendem dar assistência social no curto prazo.

Uma característica do atual voluntarismo na formulação e na implementação de políticas públicas é insistentemente confundir objetivos com instrumentos, ações de curto prazo com perspectivas de longo prazo, mecanismos de comando e controle com regras de mercado, etc. Como destaca Eric Hoffer, usualmente só vemos as coisas que estamos procurando e de tal forma que, muitas vezes, passamos a vê-las onde elas nem estão.

* Paulo R. Haddad é professor do IBMEC/MG, foi ministro da fazenda e do planejamento.

Fonte: O Estado de S. Paulo

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