sábado, 10 de agosto de 2013

Nicolau Maquiavel: ontem e hoje – Michel Zaidan Filho

A repórter do Jornal paulistano "O Estado de São Paulo", Eliana Cardozo, me pede que fale do que é atual ou ultrapassado na obra do florentino Nicolau Maquiavel, relacionando-o com os políticos brasileiros e particularmente, o pré-candidato à Presidência da República, Eduardo Campos. Em primeiro lugar, é muito difícil comparar o pensamento de Maquiavel com os políticos brasileiros, e particularmente o primeiro mandatário de Pernambuco. A história guardou do ilustre florentino uma caricatura grosseira (e pouco lisonjeira) de seu pensamento que se tornou sinônimo de politicagem, perfídia, traição, ambição a qualquer custo e fingimento profissional. O termo "maquiavelismo" foi - e ainda é - empregado de maneira pejorativa e amoral, como sinônimo de baixas e vis ações praticadas pela pior espécie de gente.

Mas obra de Nicolau Maquiavel inaugura o realismo no pensamento político ocidental. Antes dele, talvez só o grego Tucidedes tenha abertamente defendido que o poder e a força sejam o critério de verdade da história, seja lá quais forem os vencedores de turno. O realismo da teoria política de Maquiavel fez escola, exercendo uma forte influência no pensamento social moderno. E um filósofo tão contemporâneo, como Michel Foucault poderia com facilidade ser definido como herdeiro de Maquiavel. Os revolucionários sociais também se ligam à forte influência da sua teoria política, senão não entenderíamos a obra de Marx, Lênin, Gramsci e outros.

Por que essa obra é um divisor de águas na história do pensamento político e social? - Por conta da chamada "ética das conseqüências" associada às famosas "razões de Estado". Antes de Maquiavel, tínhamos - sob a forte influência da Igreja Católica de Roma - uma "ética das convicções", que prejulgava a moralidade intrínseca das ações humanas, independentemente de seus resultados. Uma ação seria virtuosa e justa se fosse inspirada nos ensinamentos religiosos e morais da Igreja ou de seus interpretes autorizados. Mesmo que essa ação condenasse a morte milhões de súditos, num cálculo ou estratégia errada, ela não deixaria de ser considerada virtuosa, pois estaria em conformidade com os ensinamentos da Igreja. O que Maquiavel fez foi avaliar a moralidade ou a justeza de uma medida ou uma ação pública pelas conseqüências que ela provocou na sociedade ou no reino. A partir de Maquiavel l, a conduta dos homens públicos (chefes, reis e imperadores) passou a ser avaliada pelos resultados concretos, em vista das famigeradas "razões de Estado", e não pelos códigos morais e éticos utilizados pela religião e seus sacerdotes. Passou-se a admitir que na Política, haveria uma "zona cinzenta" onde se moveriam as autoridades públicas de difícil delimitação entre o certo ou errado, a não ser pelos resultados perseguidos pelos governantes; nem sempre muito claros para a maioria da população.

A "ética da conseqüência" levou a popularização e a vulgarização do célebre ditado: "os fins justificam os meios", entendendo-se que não há meios intrinsecamente bons ou maus, independentemente da consecução dos fins. E estes estariam foram de qualquer avaliação moral. Naturalmente, que aceitando tal postulado todo tipo de meio, para a consecução de um fim, poderia ser utilizado, desde que desse resultado. O que pareceria a um adepto de uma moral substancia lista ou metafísica, uma espécie de cinismo descarado. E seria se fôssemos aplicar tal critério às ações humanas no plano da vida privada.

Essa ética se apóia numa certa concepção da natureza humana, segundo o humanismo passional da Idade renascentista. Para esses pensadores humanistas, a natureza humana é imutável e caracteriza por um conjunto de atributos eternos, como a inveja, a ambição, a vaidade, a perfídia, o fingimento, o egoísmo etc. Segundo Maquiavel, os humanos seriam um misto de besta com anjo. E uma sociedade que ensinasse a cada um a se comportar apenas como anjo, estaria entregando os inocentes às garras dos lobos e das cobras. Uma educação realista teria que seguir o modelo do "centauro de Quiron": meio besta meio humano. Sob pena de sucumbir os inocentes diante da maldade dos injustos.

Mas apresentar o pensamento de Maquiavel só por este lado, seria de uma unilateralidade a toda prova. A "ética das conseqüências" definida por nosso autor deveria estar a serviço de um ideal, de uma utopia: a unificação nacional italiana e a República. Maquiavel não era um cínico ou um realista sem alma ou coração. Sua teoria realista da Política de do Estado estava a serviço de um ideal: o pensador florentino era nacionalista e republicano. Seu objetivo era libertar a Itália dos estrangeiros e da influência de Roma e evitar a perigosa desagregação política e territorial entre os diversos reinos italianos, alguns governados pela Igreja ou por príncipes estrangeiros.

Só quem não leu a exortação final de Maquiavel aos Borgias e o livro que escreveu intitulado: “Discursos da Segunda Década de Tito Lívio”, pode ignorar o lado utópico, sonhador, normativo e crítico do pensamento maquiaveliano. Aí, avulta, como diria Gramsci, o elemento criador, não apenas conquistador, do pensamento de Maquiavel. Em seu livro: Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, Gramsci redefine o príncipe como o moderno partido político e ilumina o perfil do ilustre florentino, ao contrapor seu pensamento ao de Giuccardini, ao dizer que Maquiavel queria criar um novo equilíbrio de forças na Itália, enquanto o embaixador estava preocupado em manter o que já existia. Este é outro Maquiavel.

Infelizmente, os políticos e a Política contemporânea só ficaram com um pedaço da obra do pensador italiano: o realismo político. Despojaram a política de qualquer base normativa, e a transformaram num mero discurso estratégico, governado por imperativos de poder. Deixaram de fora toda base idealista, utópica, republicana, que ela possuía. Tornaram-se revolucionários sem causa, a serviço do poder pura e simplesmente. E ajudaram a popularizar a triste frase: "o fim justifica os meios", independentemente de que fins e de que meios. Os políticos modernos esqueceram o outro lado da obra. Apossaram-se do menos importante, inclusive abandonando as tipologias de forma de governo, apresentadas por ele. Como se Maquiavel fosse o apologeta das tiranias absolutistas, que perseguiam o poder pelo poder.

Está mais do que na hora de afastar o pensamento do florentino da Política como mero discurso estratégico, desprovido de pretensões de validade ética ou civilizadoras, e aproximá-lo das vertentes iluministas e contemporâneas, que vêm a Política como produção de um consenso democrático em torno de uma agenda do bem comum. Assim estaremos fazendo justiça a ele e dando uma vida à sua obra, destinada a durar muitos e muitos anos.

Sociólogo e professor da Universidade Federal de Pernambuco

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