segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A geração constituinte, 25 anos depois

Por Raymundo Costa

BRASÍLIA - Passados 25 anos de sua promulgação, em 5 de outubro de 1988, a Constituição é a moldura bem acabada do mais longo período de normalidade democrática do país. Tinha tudo para dar errado. Misturou-se a discussão do sistema de governo com a extensão do mandato do ex-presidente José Sarney (1985-1990). Findou um presidencialismo com ares parlamentaristas. Pressionados pelas corporações, os constituintes criavam despesas sem especificar receitas; a economia mundial se abria, os congressistas brasileiros a fechavam. No Palácio do Planalto, Sarney proclamava que a Carta tornaria o país ingovernável. Estava enganado ou pensava apenas em proveito próprio. A geração constituinte tomou conta da cena política, desde então, e tratou de rescrever o que foi possível, até hoje.

A Assembleia Nacional Constituinte (ANC) foi instalada em 1º de fevereiro de 1987, convocada para escrever uma Carta democrática para o Brasil, em substituição a que fora outorgada pela ditadura, de caráter autoritário como o regime militar. Os congressistas trabalharam durante dois anos, conduzidos pelo deputado Ulysses Guimarães, que além da Constituinte presidia o PMDB e era o número um na sucessão do presidente José Sarney - eleito indiretamente vice de Tancredo Neves, morto em 1985. Ulysses era o homem forte da transição democrática; Sarney ressentia-se de legitimidade.

Dos 593 parlamentares que integraram a Assembleia Nacional Constituinte, saíram 12 candidatos a presidente da República, dos quais três ocuparam efetivamente o Palácio do Planalto - Itamar Franco (PL), Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Itamar Franco era vice e assumiu no lugar de Fernando Collor de Mello, o primeiro presidente eleito diretamente após a promulgação da Carta, deposto do cargo devido a denúncias de corrupção em seu governo. Ele assinou o Plano Real, o tiro que acabou com a inflação disparado por uma equipe comandada por FHC, à época ministro da Fazenda.

Na constituinte, FHC votou contra os cinco anos de mandato para Sarney e a favor da nacionalização dos recursos minerais. Eleito para um mandato de quatro anos em 1994, instituiu a reeleição e governou por oito anos. Em seu mandato foram flexibilizados os monopólios. Lula, que o sucedeu na Presidência, chegou à constituinte como o principal líder operário do país e por cerca de 700 mil votos, a maior de um deputado em todo o país. Votou contra a Carta de 1988 por entender que os avanços ocorridos na Constituinte ficaram "aquém daquilo que a classe trabalhadora esperava que acontecesse". Na Presidência Lula fez a reforma da Previdência do setor público, provocando no PT uma crise terminaria com os dissidentes formando um novo partido, o PSOL.

"O corpo constituinte fez o que era possível fazer, o que as circunstâncias permitiam", disse ao Valor o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim, ele próprio integrante da ANC e relator da revisão programada para 1993 e que fez água. "Prova é que nesses 25 anos foram aprovadas 80 emendas à Constituição, 74 aprovadas pelo Congresso e seis na revisão constitucional", diz Jobim. "Aprovou-se o que não havia espaço para aprovar em 1988. É um processo histórico, que começou a mudar em 1995 (com FHC) e no governo Lula é que se acabou com o tabelamento de 12% dos juros". Lula só chegou ao governo em 2003, mas foi a principal referência da oposição no país desde a ANC até a eleição de 2002.

Jobim é outro personagem que emergiu na Constituinte e atravessou os governos seguintes sempre em posições-chave de governo e do Judiciário. Ministro da Justiça de FHC e da Defesa, no governo Lula, atualmente é dono de uma das maiores, se não a maior, bancas de advocacia de Brasília. Líder do PMDB na Constituinte, "teve papel decisivo na garantia das conquistas sociais no segundo turno", segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), que deu nota 5,7 ao constituinte Jobim. Da geração constituinte saiu outro presidente do Supremo, Maurício Corrêa, que fora ministro da Justiça no governo Itamar Franco.

Além de Itamar, FHC e Lula, há os constituintes cujas campanhas presidenciais ainda ressoam na memória, apesar do déficit de votos, caso de José Maria 'Ei Ei Eymael, um democrata cristão". E outros que em alguns momentos da disputa presidencial, foram considerados candidatos competitivos. Mário Covas, líder do PSDB na Assembleia, e Guilherme Afif Domingos, à época no PL, tiveram seus momentos em 1989. Mas foi José Serra, no período pós-Lula, quem encarnou nos anos seguintes o antipetismo. Serra disputou contra Lula, em 2002, como candidato do governo FHC, e como candidato favorito em 2010, depois de governar a cidade e o Estado de São Paulo. Perdeu as duas eleições e pensa em disputar novamente em 2014, num cenário que certamente terá um outro representante da geração constituinte: Aécio Neves (PSDB-SP), eleito para a ANC aos 26 anos de idade.

Do quadro de atuais postulantes à Presidência, Aécio Neves é o único constituinte

Serra foi um constituinte aplicado, o que mais aprovou emendas, proporcionalmente, 130 num total de 208 apresentadas. "A Carta reflete, sim, em grande medida, as circunstâncias da época", diz o ex-governador paulista. "Primeiro, a redemocratização, e a ansiedade natural pela ruptura com o passado autoritário recente". Em segundo lugar, segundo Serra, a superinflação pressionou o tempo inteiro. "Todo o processo de elaboração da nova Carta foi marcado pela sombra da inflação de dois dígitos mensais, fator de profunda perturbação e instabilidade social", diz. Um quadro que só "aumentou a sede dos parlamentares para 'resolver' a crise mediante preceitos constitucionais".

Da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988, também saíram dez candidatos a vice-presidente da República, sem contar com Itamar Franco. Dois foram eleitos, Marco Maciel (PFL), vice de Fernando Henrique em seus dois mandatos, e Michel Temer (PMDB), atual vice-presidente da República e provável companheiro de chapa da presidente Dilma Rousseff nas eleições de 2014. O capítulo dos vices apresenta algumas linhas amargas. O ex-senador e ex-ministro do Tribunal de Contas da União, Guilherme Palmeira (PFL/DEM) seria o candidato a vice de FHC, não fossem as acusações de corrupção contra um funcionário de seu gabinete. O ex-senador José Paulo Bisol, candidato a vice de Lula em 1989, não pôde repetir a dobradinha em 1994 por conta de acusação - nunca provada - de ter apresentado emenda superfaturada ao Orçamento para beneficiar um reduto eleitoral.

Além de três dos quatro presidentes - Collor, FHC, Lula e Dilma - eleitos, pelo voto direto, desde a redemocratização, a geração constituinte foi virtualmente hegemônica na direção das duas Casas do Congresso: contam-se oito presidentes da Câmara e cinco presidentes do Senado, com uma supremacia avassaladora do PMDB, até agora (veja a ilustração). Assim como o primeiro presidente da República eleito caiu por corrupção, constituintes que presidiram a Câmara também foram atingidos por denúncias: Ibsen Pinheiro, o deputado que o PMDB preparava para uma eventual candidatura presidencial, foi apanhado no redemoinho do escândalo dos anões do Orçamento da Câmara.

O atual presidente do Senado, Renan Calheiros, teve de renunciar ao mandato devido à acusações de que uma empreiteira pagava suas contas pessoais. O atual presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, esteve cotado para ser o vice de José Serra, mas sua candidatura foi abatida depois da denúncia de que fizera depósitos no total de U$ 15 milhões em contas bancárias em paraísos fiscais.

"O mundo passou por uma revolução (social, econômica e tecnológica) nos últimos 25 anos", disse Renan Calheiros ao Valor. "Se repetida hoje a Constituinte, muitos excessos provavelmente não estariam no texto como o tabelamento dos juros", afirmou. "Eu, pessoalmente, dei várias contribuições como o voto aos 16 anos".

Da legislatura que elaborou a Carta saíram 12 candidatos à Presidência da República

Outra demonstração de que a ANC formou a geração dos dirigentes do país, na sequência da Assembleia, é o número de constituintes que se elegeram, posteriormente, governadores de Estado: 36, contando com os vices que assumiram. O atual governador de Alagoas, Teotônio Vilela, ainda guarda na lembrança a emoção que sentiu durante os trabalhos. Motociclista, Teotônio está acostumado a percorrer as estradas e o litoral do país. Na ANC acredita ter redescoberto o país ao ver passar por ele índios, negros, quilombolas, trabalhadores de todas origens. Vilela se orgulha de ter colocado "o sertão na Constituição do Brasil", ao estabelecer que metade dos recursos do Banco do Nordeste seriam destinados ao semiárido. Até o deputado Delfim Netto, que já era uma referência na área econômica ao chegar à Constituinte, votou a favor da emenda, embora se declarasse contrário a esse tipo de vinculação.

Além de Teotônio Vilela, dois outros constituintes do que viria a ser o PSDB governam seus Estados: Siqueira Campos (TO) Geraldo Alckmin (SP). Siqueira Campos está em seu quarto mandato de governador do Estado que ele criou na Constituinte para chamar de seu: o Tocantins. Siqueira Campos votou com todos e contra todos para assegurar a divisão de Goiás e a criação do Tocantins. Votou a favor dos quatro anos de mandato para Sarney na comissão de sistematização, e com isso atraiu a simpatia da esquerda para sua causa; no plenário votou contra já pensando na ferrovia Norte - Sul, projeto do governo Sarney que beneficiaria o Estado. Na reforma agrária votou com a UDR, na mineração, com os progressistas.

"Ter sido Constituinte nos orgulha muito", diz hoje Siqueira Campos, que se prepara para deixar o cargo e assim viabilizar a eleição do filho, Eduardo Siqueira Campos, na eleição de 2014. "A ANC iniciou o processo de redivisão territorial do Brasil, o que deveria ter continuidade, pois foi o inicio da modernização do nosso país". Campos defende a divisão como instrumento para reduzir "as desigualdades, os contrastes sociais e transformar o Brasil em potência mundial. O Tocantins nasceu da Constituinte, e o nascimento do Estado trouxe melhorias na vida da população".

A ANC também foi palco para outro personagem crucial deste quarto de século da política nacional: Roberto Jefferson, eleito para seu segundo mandato, pelo PTB, com 24.938 votos. O autor da denúncia do esquema do mensalão no governo Lula teve sua participação bem avaliada pelo Diap, que lhe conferiu nota 5,25. Governista, Jefferson apoiou os cinco anos para Sarney e se alinhou com o centrão, grupo de centro-direita articulado no Congresso sob o beneplácito do governo Sarney, e com a barulhenta UDR, entidade ruralista que fez o lobby contra a reforma agrária. A denúncia de Jefferson sobre a existência do mensalão atingiu um dos mais ativos constituintes: José Genoino (PT-SP), hoje um deputado amargurado que se ressente do fato de o presente não reconhecer seu passado.

Em depoimentos e entrevistas, Lula reconheceu que o projeto do PT de Constituinte apresentava soluções mágicas que tornariam o governo inviável e até reconheceu que a Carta de 88 foi bastante avançada. Mas é lenda a história segundo a qual o PT não assinou a Constituição. Na realidade, Lula encaminhou contra a aprovação do texto constitucional em nome da bancada do PT. Em seu discurso, Lula reconheceu os avanços sociais alcançados, mas os considerou insuficientes. O deputado Olívio Dutra, que à época ombreava com Lula no movimento sindical, discursou na mesma linha.

Lula e o PT foram convencidos a assinar a nova Carta por Ulysses Guimarães com o argumento de que eles efetivamente participaram da elaboração do texto constitucional. O poder de aglutinação e de convencimento de Ulysses é destacado pelo ex-presidente do STF, Nelson Jobim. "Sem ele, não teria andado", diz, tantas eram as pressões. Lula se lembra das mais de 70 mil propostas populares. Fernando Henrique, do lobby das corporações, especialmente dos juízes, a que mais se mobilizou, na sua opinião. Numa sessão da comissão de sistematização o ex-presidente chegou a pedir que se retirassem da sala. Em depoimento ao Instituto Brasileiro de Direito Público, FHC resumiu o sentimento da época: "Foi um momento em que o Brasil sonhou".

Fonte: Valor Econômico

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