sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Faltam leis ou falta quem as queira? - Washington Novaes

No momento em que até ossários em cemitérios começam a ser depredados (Estado, 4/11), só pode ficar perplexo o cidadão que toma conhecimento da decisão do Ministério da Justiça de juntar-se a governadores, presidente do Supremo Tribunal Federal, secretários de Segurança, Procuradoria de Justiça para definir um plano de ação nos Estados que permita "combater o vandalismo", com estratégias que incluam a instalação de barricadas, vigilância nas passeatas, readequações na legislação, entre outras medidas. Segundo o ministro da Justiça, os tipos de protesto que estão ocorrendo "são recentes no País e o governo precisa agir para se adequar à nova realidade". Só que, como escreveu nesta mesma página (6/11) o jornalista José Nêumanne, "leis para punir a baderna existem, basta cumpri-las".

De fato, quem presta atenção ao noticiário sabe que os protestos generalizados nascem da insatisfação dos cidadãos com seu cotidiano. Aí faltam ações oficiais para mudar essa realidade, faltam recursos financeiros para políticas e projetos adequados; e abunda o desperdício com estímulos financeiros questionáveis a certos setores - assim como prolifera a corrupção, que, segundo texto de Roberta Pennafort (Estado, 3/11), desembarcou no Brasil em 1549 com o primeiro ouvidor-geral nomeado para cá depois de condenado em Portugal. É notória também a ausência de macroplanejamentos competentes, capazes de conciliar e sincronizar planos municipais e metropolitanos, como enfatizaram Áurea Devanso e Maria Lúcia Camargo (6/11), da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano. Principalmente numa macrometrópole como São Paulo, onde é preciso pensar conjuntamente a capital e a região metropolitana, mais Campinas, a Baixada Santista e o Vale do Paraíba. "Temos de reconhecer a impotência do município sobre complexas questões", lembrou o secretário municipal de Desenvolvimento Urbano, Fernando Mello Franco.

Nesse quadro, aumenta a perplexidade quando se vê que só o setor automotivo - e os veículos são a parte talvez mais ostensiva dos dramas urbanos - recebe bilhões de reais por ano em isenções fiscais. Os gastos to-; tais com subsídios federais chegam a R$ 79 bilhões este ano e aumentarão para R$ 93,1 bilhões no ano que vem (Estado, .7/11). Que dirá a Região Metropolitana de São Paulo, onde estão 18,9% das casas precárias do País (596,4 mil), nas quais vivem 2,16 milhões de pessoas que não têm recursos para enfrentar esse tipo de problema, quanto mais o da mobilidade?

Com muitos benefícios, o setor automotivo comercializou ainda no mês passado mais de 310 mil veículos, para se juntarem aos muitos milhões que já não têm espaço para trafegar. O ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior assegura que pelo menos a redução do IPI para automóveis continuará em vigor até março de 2014 (18/10). Não é acaso, assim, que, a cada R$ 100 que os Estados investem em infraestruturas locais, destinam R$ 217 em incentivos fiscais para atrair empresas, segundo o economista José Roberto Afonso, da Fundação Getúlio Vargas (Folha de S.Paulo, 15/9). Fora os parcelamentos de impostos em até dez anos. E as "desonerações tributárias", que chegaram a R$ 50 bilhões até agosto e podem ir a mais de R$ 1 trilhão se novas demandas por redução de impostos e anistias forem atendidas (Estado, 20/9).

Que pode pensar disso tudo o cidadão, que em média paga R$ 7,5 mil por ano em tributos? Como avaliará as benesses para indústrias de veículos se as universidades federais, juntas, recebem apenas R$ 2 bilhões anuais (Folha, 18/8)? Se a sonegação de impostos no País vai a R$ 415 bilhões por ano (Estado, 12/8), apesar de haverem sido arrecadados no primeiro semestre de 2013 nada menos que R$ 543,9 bilhões, ou 15% mais que em 2012? Na verdade, o arrecadado é pouco mais do que seria a sonegação nacional. Mas a tolerância com o não pagamento de impostos vai a ponto de a administração pública só receber 15% das dívidas que parcela para os devedores nos chamados programas Refis (29/10), • que já são oito desde 2008 e três este ano - com os não pagadores não cumprindo o que neles prometem e se inscrevendo num novo programa. Neles podem ter redução de até 100% nas multas, 45% nos juros, prazos de até 60 meses. Não é só: medida provisória recente aprovada pelo Congresso exclui de cálculos de passivos o não pagamento de PIS e Cofins e reduz a sua base, com perda de R$ 4 bilhões para a Receita (3/10).

Talvez se argumente que mais de 60% dos domicílios em São Paulo têm carros ou motos.
Com contradições ou não, seus habitantes continuam a comprar veículos, assim como em todo o País. São 3,16 milhões em dez meses deste ano, para se somarem aos 17 milhões que já atravancam as ruas. E chegarão no final da década ao dobro de hoje, segundo a indústria do setor. Com isenções e subsídios, que tirarão recursos de áreas como a da segurança pública (mais de 50 mil crimes violentos letais no ano passado, quase 200 mil roubos de veículos, mais de 1 milhão de roubos e furtos em geral no País). Da saúde (até para enfrentar doenças decorrentes da progressiva poluição do ar nas grandes cidades, por causa dos veículos: mais de 90% dos mototáxis não são seque? licenciados nem vistoriados e são os maiores poluidores, assim como um terço dos automóveis). Da educação. De tudo.

É lamentável que, nesse quadro, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado tenha rejeitado (com voto decisivo de um candidato à Presidência da República) proposta de divulgação obrigatória da lista de doadores de recursos financeiros para campanhas eleitorais (Agência Estado, 7/11). É por caminhos como esse que grandes doadores continuam a escolher gestores públicos que os favoreçam - apesar do quadro de penúria de recursos e planejamento adequado nos setores vitais para a população.

Diante da insatisfação dos cidadãos com o seu cotidiano, os governos têm de agir para saná-la

* Jornalista

Fonte: O Estado de S. Paulo

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