domingo, 17 de novembro de 2013

Giocondo, 100 anos - Luiz Carlos Azedo

Durante os debates da Constituinte, quando foi formado o chamado “Centrão”, uma coalizão de forças conservadoras, muitas das quais apoiaram o regime militar, houve intensa mobilização popular no sentido de garantir os avanços que acabaram consagrados na atual Constituição.

Giocondo Dias, então secretário-geral do PCB e que, na próxima segunda-feira, 18 de novembro, completaria 100 anos, acompanhava de perto as discussões. Numa de suas idas ao Congresso Nacional, para se reunir com a pequena bancada do PCB (Roberto Freire -PE, Fernando Santana- BA e Augusto Carvalho-DF) e alguns aliados, foi reconhecido e abordado por jovens que protestavam contra os “gazeteiros” da Constituinte, que não compareciam às votações. “Que bom ver o senhor por aqui, sou militante da juventude do PCB”, disse um deles àquele senhor de cabelos brancos, magro, de face avermelhada e intensos olhos azuis. “Muito prazer, camarada. Mas posso lhe fazer uma pergunta?” Para surpresa do jovem militante, completou: “Se esse pessoal estivesse presente, votaria com a gente ou com o Centrão?”

O episódio, de certa forma, ilustra duas características pessoais de Giocondo Dias como um dos dirigentes políticos mais importantes da história do PCB, superado apenas por Luiz Carlos Prestes, a quem sucedeu no cargo máximo do antigo Partidão: a fina ironia diante das contradições da política e a capacidade de pôr as pessoas para pensar com a própria cabeça. Natural de Salvador, Bahia, era filho de Antonio Alves Dias (Totti) e de D. Ana Maria Frederico Gerbase Alves Dias. Primogênito de cinco irmãos, perdeu o pai aos sete anos. Por isso, teve que começar a trabalhar nessa mesma época, no cais do porto, socando pimenta no pilão. Aos 13 anos, já distribuía o jornal do Partido Comunista pelas ruas soteropolitanas.

Mas foi em 1935 que começou a escrever seu nome na História do Brasil. Em novembro daquele ano, com 22 anos de idade, foi o líder militar da Aliança Nacional Libertadora (ALN) em Natal, capital do Rio Grande do Norte, onde os comunistas por três dias tomaram o poder. Levou três tiros no decorrer da luta, por um soldado aliancista que atirara contra ele, porque impediu que penetrassem no palácio para fuzilar o governador Rafael Fernandes. Fracassada a revolta, durante a qual os bondes circularam de graça para a população e outras medidas do gênero foram adotadas, os recursos do Tesouro, porém, permaneceram nos cofres do governo. Não houve saques, “expropriações” de dinheiro público, nem violência contra a população.

Fracassado o levante no Rio de Janeiro e em Pernambuco, logo no primeiro dia, a resistência em Natal se tornou impossível. O cabo Dias conseguiu se esconder numa fazenda no interior do Estado, mas foi covardemente atacado por jagunços, levando 13 facadas. Jogado quase morto numa estrada vicinal, foi salvo por D. Alzira Floriano, ex-prefeita de Lages, a mesma pessoa que tinha providenciado a sua fuga, que chamou um médico e o removeu para um hospital. Apesar do estado grave em que se encontrava, o líder revolucionário se recuperou, mas saiu do hospital para a cadeia.

Começava assim a fama do Cabo Dias, que fora um soldado exemplar, recomendado por seus superiores por sua atuação em regiões remotas da fronteira do Brasil na Amazônia. Não foi por acaso que virou personagem de dois romances de Jorge Amado, em “Subterrâneos da Liberdade” e “Seara Vermelha”, no qual é retratado como o personagem Juvêncio, o Neném, o mesmo apelido que intitula uma homenagem comovente do escritor baiano a Giocondo em seu livro de memórias Bahia de Todos os Santos, editado em Portugal, em 1978: “Baiano com as virtudes todas; o riso fácil, a discrição inata e a capacidade de sonhar com a aurora. Nunca será amargo quem luta por seu país e seu povo com ambição de concorrer na medida de suas forças para o bem comum. De quando em vez leio jornais que o procuram, com ódio mortal, policiais e inimigos da paz e da liberdade. Onde andará Giocondo Dias, dito Neném por sua mãe? Não sei mas vos afirmo que, esteja onde estiver, estará trabalhando para que o amanhã dos brasileiros seja mais belo. Baiano com régua e compasso e uma luz no coração.”

Casado desde 1934 com a estudante Maria de Lourdes Tavares, com quem teve cinco filhos, Gilberto, Antônio Eduardo, Edmundo Luís, Ana Maria e Jade, Giocondo também passou momentos difíceis no cárcere. Esteve na mesma cela com um pistoleiro que matara a própria mãe. Ao ser libertado, um ano e meio depois, o assassino lhe contou que fora contratado para matá-lo, mas recusou a empreitada. E perguntou por que razão o tratara "como gente", apesar de tudo. A resposta de Giocondo foi corajosa e desconcertante: "o senhor quer mesmo que eu diga a verdade? Pois é simples: o senhor matou a sua mãe e não a minha". De volta á Bahia, já em liberdade, Giocondo Dias passou a dirigir, desde a clandestinidade, o Partido Comunista, até a plena democratização, em 1945, quando foi eleito deputado estadual constituinte. Nessa ocasião, revelou-se um extraordinário articulador político, logrando reunir quase toda a oposição a Getúlio Vargas, aliando-se fundamentalmente aos grupos liberais, então bem expressivos ou representativos na Bahia.

Foi nesse período que travou amizades com Jorge Amado e Alberto Passos Guimarães e dirigiu homens da bravura de Carlos Marighela e João Falcão. Até mesmo no terreno cultural, a atividade dos comunistas se fazia sentir na Bahia, e isso se expressava por intermédio da revista Seiva, importante publicação antifascista animada por João Falcão, Armênio Guedes e outros jovens intelectuais e estudantes baianos. Seu mandato, porém, foi cassado quando o PCB voltou à ilegalidade, em 1947, durante o governo Dutra. Somente no próximo dia 20 de novembro, ou seja, 68 anos depois, a Assembleia Legislativa da Bahia lhe fará a devida reparação, com a devolução simbólica do mandato, iniciativa da Comissão da Verdade do Legislativo baiano.

Foi dura a volta à clandestinidade, que durou praticamente 40 anos, com alguns momentos de semilegalidade. Durante boa parte dos anos 1950, cuidou da segurança de Luiz Carlos Prestes, então o dirigente máximo do PCB. O Cavaleiro da Esperança era o homem mais procurado pela polícia política do país e todo cuidado era pouco, mas exerceu com competência a arriscada função. Já na condição de secretário de organização do PCB - o segundo posto na hierarquia partidária -, Giocondo foi o principal responsável pela articulação política que resultou na elaboração da Declaração de Março de 1958, uma espécie de aggiornamento do PCB. Do governo Dutra ao suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, o PCB tivera uma atuação muito sectária, descolada da própria realidade que o país vivia. Giocondo estava convencido disso e, pragmático, começou a articular a elaboração de uma linha política mais ampla e flexível, que levou os comunistas a se unirem ao PTB e ao PSD na campanha que elegeu Juscelino Kubitscheck para a Presidência da República.

Internamente, o PCB fora sacudido pelo XX Congresso do PCUS, no qual Kruschov denunciou os crimes de Stálin, o que provocou uma crise na direção, que chegou a ficar dois anos sem se reunir. Giocondo Dias articulou a mudança de orientação política, ao coordenar uma comissão composta por Alberto Passos Guimarães, Mário Alves, Dinarco Reis, Armênio Guedes, Jacob Gorender e Orestes Timbaúba para elaborar uma nova linha política, que contou com o apoio de Prestes: a Declaração de Março de 1958. Essa resolução do Comitê Central apontou claramente a democracia como o caminho para as transformações sociais no Brasil e condenou as concepções golpistas que impregnavam a atuação da esquerda no Brasil. Foi essa linha política, por exemplo, que norteou o PCB no episódio da renúncia de Jânio Quadros, levando os comunistas a participarem ativamente da Cadeia de Legalidade, liderada por Leonel Brizola, e que mobilizou as forças democráticas do país para garantir a posse do vice-presidente eleito, João Goulart, e a democracia.

Giocondo tentou apaixonadamente evitar os erros do PCB que facilitaram o golpe de 1964, combatendo o esquerdismo das lideranças de esquerda que queriam a reforma agrária na marra e pregavam a insubordinação de soldados e marinheiros que antecedeu a queda de Jango. Derrotado como todos os demais democratas, foi dos primeiros a compreender a verdadeira natureza do golpe de estado e as dificuldades que isso traria para a oposição. Batalhou dia e noite, na mais dura clandestinidade, para organizar a resistência democrática e rearticular o Partido, em meio à desesperança e à perplexidade que se seguiram à tomada do poder pelos militares, inclusive entre as forças políticas conservadoras que apoiaram o golpe. Giocondo estava entre os dirigentes que compreenderam a inutilidade da resistência armada à ditadura militar, que poderia levar o país a um banho de sangue, o que foi evitado, mas não impediram as ações isoladas de revolucionários como seus velhos amigos Carlos Marighela e Mário Alves, ambos assassinados, como outros oposicionistas. Giocondo tentou em vão convencê-los de que a luta armada seria um gesto desesperado e ineficaz. Insistia que se devia trilhar o caminho capaz de isolar e derrotar o regime autoritário pela luta política de massas. Os ex-militares que integravam a direção do PCB, como Giocondo e Prestes, tinham essa opinião. Era preciso encontrar uma tática adequada à correlação de forças adversa, tese que prevaleceu no VI Congresso do PCB, realizado em 1967, na mais completa clandestinidade: a política de frente democrática. A História lhes daria razão.

Reconhecer a importância dessa política para a derrota do regime é fazer justiça ao PCB e à visão de alguns de seus principais estrategistas políticos. Giocondo Dias sabia sempre desatar os nós da conjuntura e armar a tática partidária mais condizente com a realidade, essa foi a sua marca registrada como dirigente político, mesmo no exílio, ao qual foi obrigado após a série de assassinatos de membros do PCB, que culminaram com a morte de Vladimir Herzog nas dependências do II Exército, em São Paulo. Foi ainda no exílio que concebeu a tática do partido após a anistia, quando o PCB permaneceu na ilegalidade, embora seus dirigentes estivessem de volta ao país e atuassem à luz do dia. “Nunca mais volto à clandestinidade”, dizia, ao insistir que os comunistas deveriam atuar abertamente e aproveitar o enfraquecimento e a desagregação do regime militar para conquistar a legalidade do partido junto com a convocação de uma Constituinte.

Essa compreensão prevaleceu, mesmo enfrentando ferrenha oposição de Luiz Carlos Prestes, que se afastou do PCB. Giocondo o sucedeu na secretaria-geral do PCB porque a própria vida social, cada vez mais complexa e diferenciada, exigia uma direção coletiva. Foi assim que o PCB participou das eleições de 1982, mesmo com seus candidatos ainda no PMDB, da campanha das Diretas Já e da campanha de Tancredo Neves, em 1985. Mesmo nos momentos mais dramáticos, com os atentados a bomba, as ameaças e provocações aos dirigentes e militantes, e a absurda prisão de Giocondo e dos delegados ao 7º Congresso, em São Paulo, dezembro de 1982, essa posição prevaleceu. Acabou vitoriosa no processo político, com o fim das perseguições aos comunistas e a conquista da liberdade de organização partidária, em maio de 1985, durante o governo Sarney.

Hoje, podemos dizer que a democracia brasileira é conspurcada pela lei da vantagem pessoal, pela prevalência do interesse privado, pelo desprezo da coisa pública: o interesse coletivo ficou subordinado ao interesse individual. “A saída é a direção e o controle coletivos”, diria Giocondo Dias, hoje, diante da emergência dos movimentos sociais e da falta de perspectiva de nossa juventude em relação à política, aos partidos e aos políticos.

Foi árdua e dura a pequena tarefa de tecer na clandestinidade a luta pela democracia e por um mundo melhor, como diria Brecht:

Pela glória quem não faria grandes coisas?
Mas quem as faz pelo olvido?
E a glória busca em vão
os autores do grande feito.
Sai da sombra por um momento
rostos anônimos, dissimulados,
e aceitai;
o nosso agradecimento.

Obrigado, Giocondo Dias!!!

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