domingo, 22 de dezembro de 2013

Democracia política e valores democráticos -- Raimundo Santos

Os partidos da Oposição estão ante a responsabilidade de construírem, com suas candidaturas à Presidência da República, uma ampla convergência em condições de levar a disputa ao segundo turno e abrir caminho para a eleição de um governo de orientação democrática. A democratização da vida nacional do tempo contemporâneo progrediu quando atores de diferentes orientações se uniram na defesa da democracia política em conjunturas difíceis, nas quais correntes de esquerda não se desobrigaram de agir politicamente.

Na sequência do suicídio de Getúlio, em agosto de 1954, houve resistência à quebra da institucionalidade constitucional, no meio militar com a reação do general Lott garantindo a eleição presidencial de 1955. Este sentimento antigolpista se refletiu na candidatura de Juscelino Kubitscheck a Presidente da República e João Goulart a Vice-presidente por uma aliança de seis partidos liderada pelo PSD (Partido Social Democrático) e o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), com apoio dos comunistas. Empossado na Presidência da República no começo de 1956, Juscelino montou seu governo com setores, no dizer daquele tempo, “entreguistas” e “nacionalistas”. Esta composição ensejou, durante todo seu mandato, pressões de dentro e de fora da coligação eleitoral (da “ala moça” do PSD, dos trabalhistas, do PCB) por meio de ações parlamentares e extraparlamentares para que o Presidente adotasse medidas reformistas e de defesa da economia nacional.

Em 1960, o PSD e o PTB lançaram para Presidente da República, o general Lott, e, para vice, João Goulart, ex-ministro do Trabalho no segundo governo Vargas, em coligação com o PSB (Partido Socialista Brasileiro) e três outros partidos, também com apoio do PCB. Lott perdeu a eleição para Jânio Quadros, o candidato à presidente da UDN (União Democrática Nacional), no entanto, a coligação elegeu João Goulart, seu vice-presidente, como então permitia a legislação eleitoral. A renúncia de Jânio em agosto de 1961 alterou a disposição de forças do quadro político, formando uma conjuntura de grande instabilidade. O golpismo reapareceu no veto militar à posse de João Goulart e ao mesmo tempo desencadeou reações em defesa da Constituição. Vitoriosa a mobilização antigolpista, a posse de Jango abriu caminho para o surgimento de um governo de orientação diversa da de Jânio e da conservadora UDN, mesmo com a imposição do parlamentarismo, aprovado pelo Congresso Nacional, como condição para que assumisse a Presidência da República, cancelado pelo plebiscito de janeiro de 1963.
 
A posse de João Goulart colocou a sua coligação eleitoral o problema prioritário de agregar diferentes forças na ampla sustentação de um governo que se propunha concretizar “reformas de base” na vigência do regime democrático (ver os textos de época de Celso Furtado: “Reflexões sobre a pré-revolução brasileira” e “Subdesenvolvimento e estado democrático”, cf. C. Furtado, A pré-revolução brasileira, Rio de Janeiro: Fundo de cultura, 1962).

Santiago Dantas, Ministro da Fazenda de Jango, chamando os grupos políticos que compreendiam a complicada situação de "esquerda positiva", reclamou, no final de 1963, da falta de lucidez de setores das esquerdas e do trabalhismo e das áreas que influenciavam. Naquela conjuntura tensa, o campo da “esquerda positiva” não conseguiu evitar a radicalização que levou João Goulart ao isolamento político e ao fim do seu governo em 1964. Destituído o Presidente, opositores de diversas orientações, correntes partidárias, do mundo social e do meio cultural, e descontentes com o novo regime (total ou parcialmente, em relação a um ou mais aspectos das suas ações) se uniram no Movimento Democrático Brasileiro (MDB), dando vida à resistência política que daria fim à ditadura em 1985.

Diferentemente da experiência da “frente nacional e democrática” (expressão dos anos de JK e Jango), na convergência emedebista iria se firmar a valorização da democracia política como caminho para alargar direitos e realizar reformas estruturais. No transcurso da resistência ao regime de 1964 se desenvolveria um padrão de agir por meio da política segundo fins referidos ao conjunto da sociedade brasileira. Pode-se dizer que se assentaria comprometimento com os valores democráticos em ambientes do MDB e depois em áreas peemedebistas (uma parte significativa delas, mais adiante, em 1989, iria fundar o PSDB (Partido da Socialdemocracia Brasileira). Ao tempo que eram ativistas da Resistência por demais insistentes em colocar as liberdades no centro dos objetivos da frente democrática (PCB, 1965), os pecebistas receberiam influxos dessa vivência democrática no seu próprio modo de pensar. Com o correr do tempo, a esquerda histórica tentaria redimensionar suas concepções de mudança social sob hegemonia de classe, particularmente entre 1976 e os primeiros anos 1980.

Assim, essa cultura do agir político criativo na democracia se desenvolve na vida política nacional através do ativismo continuado de muitos atores, partidários e correntes de esquerda de orientação democrática, incorporando valores do meio artístico-cultural e elaborações da intelectualidade. Vários ambientes da música, da literatura, do teatro e do jornalismo são presenças construtivas da cultura da resistência política ao regime de 1964. Chama a atenção a função das revistas e editoras de cultura e política e seus espaços abertos à discussão intelectual e política, exemplares os livros e as revistas publicados pela Brasiliense, pela Civilização Brasileira e pela Paz e Terra, especialmente de 1965 até 13 de dezembro de 1968, quando o regime baixou o Ato Institucional n. 5 que endureceu seus traços de estado policial.

Os principais protagonistas da mobilização pelas liberdades e, a partir da anistia de 1979, pela consolidação de um processo de transição política (então iniciado sem um governo de transição, cf. Armênio Guedes. O impasse e a saída democrática (31/12//80), in O marxismo político de Armênio Guedes, Brasília/Rio de Janeiro: FAP e Contraponto, dez. 2012), exerceriam, com claros fins democráticos, papel decisivo nas Diretas-Já, na hora da derrota do regime de 1964, elegendo Tancredo-Sarney no Colégio Eleitoral, durante o primeiro governo civil, na Constituinte, e no impeachment de Collor. A cultura política da Resistência tem muita relevância quando setores seus estiveram à frente do apoio de todos os partidos ao breve governo político de Itamar Franco.

No começo do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, isolado o pequeno PCB, se reduziria a atuação de correntes de esquerda de orientação democrática na cena política nacional, sobremaneira quando o PT optou pela oposição total ao governo do PSDB e do PFL (Partido da Frente Liberal). O PT se recusava a distinguir a composição de governo heterogênea liderada por Fernando Henrique Cardoso, não querendo assim balizar sua atuação como uma ação dotada de previsão e perspectiva em relação à conjuntura e ao futuro próximo. Tampouco veria a globalização em registro positivo, não divisando possibilidade de pressões com vistas a modificar as reformas estruturais da coligação PSDB-PFL.

A nova esquerda não interveio na cena política em busca de convergência com correntes de esquerda e de centro-esquerda para se opor a Fernando Henrique Cardoso e negociar soluções alternativas. Como certa vez disse um dos líderes do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, o seu governo não teria encontrado oposição, a não ser a oposição do MST.

Entrementes, havia se formado um clima intelectual estimulante daquela postura do PT. Este clima começara a ser percebido entre nós, logo após a derrota de Lula na eleição presidencial de 1989, a partir da circulação nos meios acadêmico-universitários de muitos textos que traziam as teorias dos movimentos sociais como ações coletivas de confronto direto com o Estado, de desconfiança em relação aos partidos e instituições, senão de negação da própria atividade política. Não poucos autores da bibliografia especializada da passagem da década de 1980 aos anos 1990, passaram a falar dos "movimentos sociais como política”.

Como uma das decorrências da anistia de 1979, o PT surgiu desconsiderando aquela cultura política nascida para a ativação pluralista da vida nacional. Por sua vez, Luiz Inácio Lula da Silva, nos primeiros anos do PT, quando não era ainda liderança determinante da sua vida interna, nela não incidira. A partir de 2003, à frente da Presidência da República, de tanto repetir o “Nunca antes neste país”, para realçar dimensão histórica das suas realizações de governo, indicava caminho próprio, levando para rumo singular correntes de esquerda marxistas reunidas no PT, como agora se vê.

A princípio tida como idiossincrática, essa verbalização serviu para afirmar um imaginário de uma nova Era que o ex-presidente dizia inaugurada por ele e o PT. Lula transcendia sua identidade – e a do PT – de defensor de interesses trabalhistas, construindo imagem nova em nome de um social referido aos contingentes pobres, com o qual se projetaria na cena nacional como representante maior dos desvalidos.

Essa estratégia se afastava dos compromissos com o pluralismo e os valores da democracia política – concretizados em cláusulas da Constituição cidadã de Ulisses Guimarães. Ao contrário, no último decênio, a cooptação assumiu elevado nível, incorporando ao governo “tudo o que era vivo”, como já se disse dos mandatos do ex-presidente, e prossegue no governo de Dilma. Em todo este período, têm sido recorrentes nas falas de Lula ambiguidades e resistências em relação à aceitação plena do Estado democrático de direito.

Com frequência, surgem manifestações públicas – de Lula, do PT e de áreas de sua influência, inclusive intelectuais –, corrosivas de instituições republicanas, incessantes ataques à mídia e ao STF, acirrados nesse momento por conta das condenações da Ação Penal 470. Nos governos petistas, aprofundou-se o enfraquecimento do mundo político, sendo o mensalão o emblema maior da busca apolítica de maioria no Congresso Nacional e hegemonia nos partidos.

Ao “Nunca antes neste país” veio se somar o “nós e eles”, que igualmente perpassa diferentes falas do ex-presidente até hoje, o “eles” referido às elites e ampliado aos opositores e críticos do regime. Essa pregação da divisão do país ao meio reserva para o “nós” o discurso retórico – pois mobilizado para manter-se no governo – do vasto alcance da inclusão social que estariam trazendo os programas governamentais.
 
Esse imaginário de uma Era histórica dos governos petistas e a polarização entre a missão de Lula e as elites se naturalizou por dentro do PT, e áreas da sua influência e em meios intelectuais, espalhou-se por esferas e lugares governamentais, sedimentando um establishment de grande tamanho.

O pressuposto da democratização da vida nacional – a preservação e alargamento da democracia política e o pluralismo em suas muitas dimensões – volta a se colocar como questão central do presente momento eleitoral, pois pairam sobre o país nuvens estranhas, perigosas, se Lula, o PT e o governo retomarem o ímpeto – detido pelas movimentações de opinião pública de junho – com que vinham construindo o establishment, e se conseguirem minorar a erosão da condenação dos mensaleiros.

Logradas essas recuperações, talvez o “nós e eles” venha dar ao ex-presidente atributo ainda forte para tentar reger as coisas brasileiras e levá-las para dentro do seu imenso bloco oficialista. Em todo caso, a retomada da iniciativa, mesmo sem o fôlego anterior às passeatas dos jovens, movendo establishments e máquinas eleitorais desde Brasília e pelos estados e municípios, terá grande repercussão na eleição presidencial.

Prof. da UFRRJ e autor do livro Agraristas políticos brasileiros, Brasília: FAP-NEAD, 2007.

Fonte: “Gramsci e o Brasil” 

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