domingo, 2 de fevereiro de 2014

Regina Schöpke: Sartre acerta as contas com Flaubert em obra monumental

'O Idiota da Família', primeiro volume da trilogia biográfica do filósofo francês, chega às livrarias

Quando nos deparamos com O Idiota da Família, livro que Jean-Paul Sartre escreveu sobre o escritor Gustave Flaubert, ficamos inteiramente desconcertados. Afinal, trata-se da última obra do filósofo francês, com cerca de três mil páginas, dividida em três volumes monumentais (e isso sem falar que se trata de uma obra inacabada, já que Sartre teve que abandoná-la quando ficou cego). Sem dúvida, estamos diante de uma obra de fôlego, que expressa a força de uma paixão. Uma paixão cujo objeto não era exatamente Flaubert, a quem o filósofo considerava seu oposto, mas o próprio método sartriano de análise dos indivíduos. Era chegada a hora, afinal, de aplicar sua “psicanálise existencial” num caso concreto e o escolhido foi o autor de Madame Bovary.

De fato, esta obra está longe de ser uma biografia no sentido mais ortodoxo. Não se trata simplesmente de retratar Flaubert, mas de colocá-lo como objeto de uma dissecação. E o termo é apropriado, já que Sartre trata Flaubert como “um morto”, por onde se pode entrar pelo lugar que se desejar, embora ele prefira começar, como Freud, pela infância. E, afinal, para o autor de O Ser e o Nada, é na mistura de psicanálise, marxismo e existencialismo que se encontra a chave para a compreensão total de um homem (que, para Sartre, é tanto um ser social e histórico quanto uma singularidade).

Bem, se é mesmo possível descortinar uma alma na sua totalidade, ou seja, dar conta do que é singular e irredutível nela, não sabemos. O que sabemos é que Sartre se esforça para fazer isso, para o bem e para o mal. Sim, a obra é um monumento inegável, mas sua validade é discutível para muitos flaubertianos. Afinal, eles se perguntam para que serve aos amantes da literatura a análise de um Flaubert passivo e neurótico ou mesmo que se racionalize de um modo frio e duro suas dores e sofrimentos pessoais – que incluem, neste primeiro tomo, uma infância afetivamente dolorosa, onde ele chegou a ser considerado “retardado” pela família por conta das dificuldades que enfrentou para aprender a ler e a escrever.

Talvez seja possível chegar às causas mais profundas da dor que levou Flaubert a se refugiar na escrita ou na “irrealidade”, como pensava Sartre, mas nem por isso se consegue explicar porque uma criança sofrida se torna artista e devolve ao mundo que lhe machuca algo de sublime. Flaubert poderia deixar-se corroer pelo ressentimento, tornar-se um inútil ou um marginal, mas deu ao mundo a sua arte, a sua obra. Sartre quer explicar isso, e o faz de um modo obstinado e obsessivo. Mas ainda que seja possível desconstruir as ideias e ações de alguém, é mesmo possível explicar o mistério do talento e da criação em si?

Bem, não há dúvida de que se trata de uma obra notável, mas é preciso lê-la com espírito crítico. Afinal, Sartre fala de alguém que ele considera o seu oposto, a começar pelo fato de que, para ele, só um artista engajado, que produz uma obra consciente e refletida, tem verdadeira ação social – um ponto de vista, aliás, que exclui a quase totalidade dos artistas, que sempre criaram por um apelo incondicional de sua natureza inquieta e atormentada.

Sim, Flaubert é o oposto de Sartre, e é isso talvez que tenha excitado ainda mais o seu desejo de compreender como ele se tornou “aquilo que ele é”. Sabemos que, por anos a fio, Sartre se debruçou sobre a obra e a correspondência de Flaubert, bem como sobre qualquer outro vestígio que lhe ajudasse a compor a personalidade e o caráter mais profundo do mestre do realismo francês. Se ele conseguiu, é uma questão de ponto de vista; e se era esta a sua única intenção, quem pode dizer? O que sabemos é que Sartre acusava Flaubert de tê-lo envenenado na infância com seu “ódio abstrato da humanidade”. Seria esta obra, então, como pensam alguns, um acerto de contas com o escritor?

Seja como for, independente do que se diga, há algo de grandioso em se acompanhar os passos de um gênio como Flaubert. Afinal, conhecer de perto a existência de um grande homem é sempre conhecer a história de uma superação, seja das próprias limitações, seja das limitações que o mundo impõe aos espíritos mais críticos e criativos.

Não esqueçamos, porém, que o próprio Sartre nos pediu que lêssemos esta obra um pouco como um romance. Sim, talvez porque, em parte, ela seja mesmo uma obra de ficção. Afinal, é impossível ir tão fundo na vida e no pensamento de alguém sem se misturar com ele e, assim, como em todo jogo terapêutico, a linha que separa analista e analisado é mais tênue do que se pensa. Talvez Sartre tenha simplesmente recriado Flaubert ou talvez Sartre seja ele próprio um pouco uma criação de Flaubert. Afinal, Flaubert, com a sua pena, também ajudou a escrever a história de Sartre.

Regina Schöpke é filósofa e autora de Matéria em movimento e Dicionário filosófico

O idiota da família – Gustave Flaubert de 1821 a 1857 (vol. 1)
Autor: Jean-Paul Sartre
Tradução: Julia da Rosa Simões
Editora: L&PM (1.112 págs., R$ 128)
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Fonte: O Estado de S. Paulo / Caderno 2

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