No último dia 20 de fevereiro, escrevi um artigo denominado “Bolsa Familia: debate impostergável”. Postei no meu Facebook e enviei para minha rede de amig@s via email. Muito me surpreendeu a repercussão. Não vou me deter aqui nas manifestações de aplauso e concordância, que foram expressivas, mas sim naquelas que colocaram contrapontos, sugeriram mudanças, acréscimos e até propuseram ocasiões de discussão.
O artigo foi publicado no site Gramsci e o Brasil, no site da Fundação Metropolitana de Belo Horizonte, no blog Democracia política e novo reformismo, que difunde o pensamento da esquerda democrática, e na rede de mulheres do PPS. O editor da revista Política democrática me pediu autorização para publicar o artigo no próximo número de março, e o Centro Ruth Cardoso propôs uma oficina sobre o tema.
É um bom começo, um grande, difícil e desafiador caminho a trilhar.
O Bolsa Família, que deveria ser objeto de debate amplo e análise profunda, sem preconceitos, sobretudo no meio acadêmico, acabou virando símbolo da disputa política. Defender intransigentemente o Bolsa Família, como se defende o sagrado nas religiões, e só publicar suas virtudes é bandeira do PT, da reeleição de Dilma e até, talvez, do sonho de manutenção do lulopetismo no poder. E falar do programa com argumentos ideológicos impregnados pelo conservadorismo e sentimentos alheios aos interesses populares virou bandeira dos contrários ao PT.
Causa desconforto e até desolação ver o que transparece na mídia e nas redes sociais, transformadas em arena de ataque vs. defesa do Bolsa Família. A irracionalidade e a ideologização no tratamento do tema tomam espaço e ganham corpo.
Já no final dos anos 1970 e com vigor nos anos 1980, havia um clima favorável à expressão de inteligências que colocavam em questão as políticas sociais. Sem dúvida, este acúmulo ajudou a produzir conquistas expressas na Constituição de 88 e a formular políticas democráticas e promotoras de cidadania, como o SUS, o ECA e a Loas (Lei Orgânica da Assistência Social), que cito só como exemplos.
Saudosa sou das análises de Aldaíza Sposati, Carmelita Yasbeck, Beth Souza, Marta Campos, Beatriz Abramides, Vicentina Velasquez, Octavio Ianni, Evaldo Amaro Vieira, enfim, da efervescente e combativa PUC sob o comando de Nadir Kfouri. A fragmentação, pulverização, a centralização e, sobretudo, o assistencialismo como força da inércia e estratégia de dominação politica pareciam ter seus dias contados, morte anunciada nos corredores daquele imponente prédio no bairro Perdizes em São Paulo. A assistência social alí foi recolocada no plano do direito, da ética, da emancipação, da articulação com o mundo do trabalho e da cidadania plena, na vanguarda do bom combate.
Importante conceituar o assistencialismo, sobretudo na forma como se institui a relação benefício vs. beneficiário, criando uma relação de favor e submissão que desconfigura a noção de autonomia e direito. Críticas, hoje, viraram vozes do passado, ecos do saudosismo, sons de fantasmas da direita, passos de assombração da Casa Grande, açoites da senzala. “Político que criticar o Bolsa Família perde eleição” virou refrão do marketing eleitoral. Outro refrão parece ter caído no gosto do senso comum: “Onde estão as portas de saída?”. Renda mínima como direito não é remédio que se dê ao doente em hospital, na expectativa de alta.
Da janela do meu quarto e do escritório de trabalho, tenho vista privilegiada para o céu e para as montanhas que me levam às lições aprendidas e guardadas desde minha infância: “Ninguém vai nivelar as montanhas de Minas”. Creio que este sentimento de mineiridade e de resistência ao nivelamento e aos padrões de conformidade nunca me moveu tanto como agora. O pensamento critico nacional está adquirindo a impotência e o desalento de um eunuco. A maior mudança aceitável ao status quo é transformar politicas de governo em politicas de estado, sem analisar o contéudo essencial dessas politicas.
É inconsteste o efeito deletério que podem ter a médio e longo prazo o avanço avassalador do assistencialismo, a adequação a um padrão mínimo de sobrevivência e dependência e a submissão de enorme parcela da população ao Estado nacional, que se torna cada vez mais pai-padrasto.
Recentemente uma jovem estudante de ciências sociais me perguntou: “Você não acha que este arremedo de welfare state que está se instalando no Brasil, nivelando por baixo, não compromete a democracia?”. Boa pergunta, que espero um dia poder responder com segurança. No meu artigo, tentei uma inovação conceitual, uma mudança de paradigma. Jamais tratarei irresponsavelmente um tema que diz respeito à vida cotidiana de 50 milhões de brasileiros. Jamais farei propostas que poderiam soar, mesmo de longe, como ameaça ao benefício, que por razões sociais, econômicas ou politicas representa uma conquista para tantos que viviam à mercê da extrema miséria e da fome.
Creio ser necessário um resgate histórico das politicas de transferência de renda no Brasil, para situá-las numa visão de processo, analisar erros, acertos, avanços e retrocessos. Não há nenhum problema em governos encamparem politicas de outros que os antecederam — ao contrário, são proveitosos para a nação a continuidade e o aperfeiçoamento das boas práticas.
A questão que merece ser analisada é que o Bolsa Família, pelo impacto e mecanismos de gestão, tornou-se muito mais politica econômica complementar (nem sequer suplementar) de um modelo econômico sustentado no consumo do que politica assistencial propriamente dita. Recomendo neste passo a leitura do artigo de Ladislau Dowbor, “Os potenciais dos programas antipobreza”, publicado na Carta Maior em 17 de fevereiro de 2014.
A preocupação em não penalizar ou não impedir o beneficiário de receber a bolsa, ao ingressar no mercado de trabalho ou nele já estar inserido, é uma tese bem aceita, desde que seja por curto período. Observa o empresário Dácio Pozzi, do setor de cosméticos:
Não posso concordar com a perpetuação do sistema para aqueles que já se encontram em condições de dispensar este apoio [...] Será que a escala de Maslow está valendo? Os efeitos no ramo dos produtos de beleza, notadamente supérfluos, nunca foram tão vantajosos.
Não é preciso ser economista para saber por onde passam o dispêndio e o endividamento dos segmentos mais pobres, especialmente aqueles recém-beneficiários de uma precária ascensão social. A geladeira pode estar vazia, mas muitos bens supérfluos estão garantidos, mesmo que sua aquisição resulte de compras a prazo ou de endividamento. Simbolos de status passam a ser objetos preferenciais dos emergentes numa sociedade de consumo, pelo menos por algum tempo.
A proposta que estou formulando e gostaria de debater não é uma proposta de aperfeiçoamento. Não se trata de transformar o Bolsa Família em politica de estado, como propõe o Senador Aécio Neves. A proposta que defendo vai ao encontro do cerne mesmo do Bolsa Familia.
Vejamos as objeções de Renato Janine, filósofo da USP.
Ela [a proposta] exigiria mais dinheiro? Haveria mais dinheiro disponível? [...] Ainda mais agora: depois de pelo menos 50 milhões terem subido das classes D e E para a C, fica cada vez mais difícil retirar da base da pirâmide social os, digamos, 50 milhões de remanescentes. E, portanto, mais caro.
Além desta objeção, há uma outra sobre a universalidade do Bolsa Familia.
Sendo universal, todo mundo ganharia, sem pedir, sem comprovar. Assim se eliminaria a fraude e despenca a burocracia. Se por um lado haveria um gasto maior com o beneficio em si, haveria uma economia no custo das atividades burocráticas de gestão do programa. O problema é que, sem as condicionalidades (criança na escola, vacina), o BF perde o papel de indutor de boas práticas por parte da família. Esta objeção para mim é decisiva. Dar sem exigir algo em troca, que empodere, é errado.
Voltando à questão do custo do programa, Janine reforça
[...] o problema dos remanescentes na elevada pobreza — miséria não é apenas de dinheiro, é de complexidade mesmo. Restam na D e E os casos mais difíceis. Isto exige mais dinheiro, mas também mais inteligência no trato dos casos.
O economista e ex-ministro do Trabalho, Walter Barelli, coloca várias questões, entre as quais destaco duas:
(a) O valor da bolsa. Ela cada vez mais se afasta do nível de sobrevivência, pois a correção dos seus valores não tem critérios claros; (b) Não está na hora de se pensar em um “Bolsa Família 2”, que juntasse o que não existe no projeto atual?
O fato de eu ter sugerido que o programa poderia até ser vitalício (não necessariamente) é o ponto que tem gerado mais controvérsias e certamente exigirá argumentos muito consistentes. Dos muitos contra-argumentos e sugestões recebidas, selecionei a opinião de dois pesquisadores da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro. O prof. Luiz César Gonçalves Araújo reconhece que a análise da questão exige muito esforço e disposição para que sejam colocados os pingos nos is e sugere que eu aprofunde a noção de como transformar o BF em investimento.
A profa. Sonia Fleury, além de sugerir a leitura do livro Nova classe média no Brasil, disponível on-line na Fundação Heinrich Böll, que traz artigo seu e outros textos interessantes correlatos, diz:
Acho que o artigo está muito bom [...], faz uma correta revisão histórica e aponta sua ideia de premiar os que buscam superar a pobreza. No meu entender, a busca pessoal pela superação da pobreza não é o que garante a sustentabilidade do desenvolvimento, pois é o padrão estrutural de desenvolvimento que repõe novos pobres a cada dia.
Sim, cara Sonia, mas a busca pessoal, familiar e comunitária pode ser um componente importante, uma nova energia propulsora, sobretudo no aspecto cultural.
Para concluir e me motivar passar o carnaval de 2014 no “bloco” do Bolsa Familia e na passarela da internet, vou refletir sobre a Parábola dos Talentos, Mateus, XXV, 14-30, e tentar responder à provocação de Mariana Meirelles, do Ministério do Planejamento: “O Bolsa Familia consegue de fato reduzir desigualdades sociais?”
Juiz de Fora, 26 de fevereiro de 2014.
Denise Paiva é assistente social e ex-Assessora de Assuntos Sociais da Presidência da República no Governo Itamar Franco.
Fonte: Gramsci e o Brasil
Durante muitos anos fui voz única do não aceite de políticas como esta. Ainda o sou. Só que cansei de ecoar ... Discordo de muitos em questões que visualizo de forma distoante do que entendo ser políticas públicas. No nosso país existe um ranço cultural difícil de ser demovido. Consumo nunca foi riqueza. Poupar sim. As classes enfatizadas em pesquisas direcionadas não demonstram a real condição das mesmas que sofrem as consequências nefastas do crescimento das drogas de superfície como o crack e os homicídios de jovens.Tudo saldo da má política pública que insistem em enfatizar. Um país para ser desenvolvido passa pwlo esclarecer de sua gente sem divagações ou ilusionismo. Assim penso ainda e de forma diferente ainda...
ResponderExcluirD. Denise fraga o pt não da a vara e o anzol e sim o peixe portanto a ideia e se perpetuar no poder sim
ResponderExcluir