segunda-feira, 24 de março de 2014

José de Souza Martins: A lei da madeira

Num país em que a pseudocidadania não dá à mulher proteção contra o estupro, valores arcaicos a protegem, a seu modo, com a cultura da vingança e do castigo

Os ataques de homens a mulheres no metrô e nos trens da CPTM mostram quanto ainda estamos longe de reconhecer a mulher como ser de direitos iguais e universais. Os agressores foram, num caso, um universitário, desempregado, residente na periferia. No outro, um técnico de informática e um engenheiro, igualmente jovens, que fotografavam as partes íntimas das vítimas na escadaria do metrô. Colhiam material visual para usar na internet. A Delegacia de Polícia do Metropolitano (Delpom) vem monitorando esse ativismo nas redes sociais. Uma página no Facebook, que se chama "Os Encoxadores" e estimula esse tipo de agressão contra passageiras de trem e metrô, tem mais de 12 mil seguidores. Trata-se, pois, de um movimento coletivo motivado por propósitos perversos e antissociais. Só neste ano, a Delpom já registrou 22 casos de ataques a mulheres em trens e estações, dos quais apenas um, o do universitário, foi classificado como estupro, sendo os demais definidos como importunação ofensiva ao pudor.

Dois dias antes da ocorrência na Estação da Luz houve uma tentativa de linchamento no outro extremo do País, em Boa Vista, Roraima. O sujeito arrastara para um matagal e tentara estuprar uma adolescente que fora levar a irmã à escola e voltava para casa. Ela escapou e pediu socorro, o que provocou o ajuntamento de vizinhos furiosos, que atacaram o estuprador a socos, pontapés e pauladas. Açulados pelas mulheres, os linchadores o despiram e lhe enfiaram um pedaço de madeira no ânus. Desmaiado, sangrando, foi amarrado e arrastado pelas ruas. Alguém filmou a ocorrência e colocou as imagens no YouTube, o que vem se tornando cada vez mais frequente.

A violência contra a mulher, longe de regredir, aumenta. Também modernizada, amplia-se na forma e no alcance, anula direitos lentamente conseguidos. Cada vez mais os agressores agem como se agredir as mulheres fosse um direito, como se a mulher fosse um ser de segunda categoria, mero objeto à disposição do homem. Os casos que vêm ocorrendo no metrô e na ferrovia envolvem como agressores pessoas da classe média, da qual amplo setor chega ao uso dos recursos e equipamentos do mundo moderno sem que sua mentalidade também tenha chegado lá, mesmo tendo curso superior. Chegaram à internet, mas não à civilização. São pessoas que têm uma relação patológica com os meios da modernidade.

Numa sociedade historicamente originária da cultura mutilante e repressiva da escravidão, que se disseminou para todo o conjunto das chamadas classes subalternas, e não só para elas, era de se esperar que a progressiva ampliação da liberdade civil e cidadã encontrasse um obstáculo no próprio novo suposto cidadão. Há muitas manifestações das consequências do desencontro entre o que se era e o que ainda não se é, apesar do progresso. A liberalidade dos tempos atuais, entendida como permissividade, como triunfo do mais forte ou do mais esperto e atrevido contra o mais frágil e simples, criou e difunde a curiosa concepção de que aqui as pessoas só têm direitos, nenhum dever.

O caso de Roraima, no outro extremo, contrasta com a benevolência liberalizante de classificar a agressão contra a mulher como mera importunação ofensiva ao pudor. Não se trata de adotar a lei do cão. O caso de Roraima e de numerosos outros semelhantes envolvendo o linchamento do agressor, documenta antropologicamente que a população, baseada no costume e na tradição, tem uma tolerância bem menor em relação a essa violência e adota extremo rigor no conceito de justiça com que a pune. Embora o índice de mortos e feridos em linchamentos em geral seja quase igual ao registrado em linchamentos motivados por estupro, o índice dos que escapam é de 8,2% num caso e de apenas 2,9% em outro, o que bem indica quanto o estupro é mais violentamente punido em comparação a outros motivos para linchar. É significativo que no caso de linchamentos de presos por estupro por outros presos o índice de mortos e feridos seja de 80%, dois terços dos quais de mortos. Mesmo os presos têm dificuldade em conviver com alguém que tenha praticado esse tipo de crime.

O estupro não é para a população apenas a consumação física da agressão sexual, mas também a violência simbólica do desrespeito. Muito mais grave do que para a classe média adventícia, cujos valores dominantes são os do mundo do consumo e não os do mundo da pessoa, o mundo das coisas e não o dos humanos. Os linchadores tendem a punir por igual tanto o estupro quanto o desrespeito. É que a mulher em nossa cultura tradicional é mais que o ser biológico. É também depositária da sacralidade da reprodução, o que a torna sexualmente intocável, a não ser nos ritos próprios do casamento e da procriação. O que não tira do vínculo sexual tudo aquilo que lhe é próprio e toda a alegria que é própria do amor. Portanto, num país em que a pseudocidadania, mais de discurso do que efetiva, ainda não conferiu à mulher toda proteção a que tem direito, os valores arcaicos da sociedade tradicional a protegem, a seu modo, na cultura da vingança e do castigo definitivo.

José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros, de A sociologia como aventura.

Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo

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