sexta-feira, 14 de março de 2014

Maria Cristina Fernandes: De Gordon a Cunha

Menos de três quilômetros separam o Conjunto Nacional, na Av. Paulista, do Sesc Consolação, na Vila Buarque, em São Paulo. Mas os auditórios que, na quarta-feira, debateram duas efemérides, os 20 anos do Plano Real, e os 50 anos do golpe militar, pareciam separados por uma galáxia.

No primeiro auditório, dominado por economistas, empresários e tucanos, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse que a coalizão montada por governos petistas transformou o modelo brasileiro num "presidencialismo de cooptação". Afirmou ainda que o governo Dilma Rousseff é autoritário por decidir à margem do Congresso sem deixar claro por que se o governo coopta tanto, precisaria escantear os parlamentares.

No auditório da Vila Buarque a única gravata era a do ex-ministro da Justiça do governo FHC, José Carlos Dias. O encontro era promovido pelo Cebrap, criado e presidido pelo ex-presidente.

O evento na Av. Paulista já havia terminado quando o cientista político Fernando Limongi iniciou suas comparações entre a democracia que antecedeu o golpe de 64 e aquela iniciada pela Nova República.

Mostrou que a dominância do Executivo sobre o Legislativo hoje, é, de fato, muito superior àquela observada no sopro de democracia que começou em 1946 e foi até a quartelada.

Essa prevalência, no entanto, não começou com petistas ou tucanos (ver tabela). É decorrente do modelo desenhado pela Carta de 1988, movido pelo consenso de que era preciso evitar a instabilidade e a paralisia que os constituintes avaliavam ter levado à crise de 1964.

Na mesa com Limongi, a cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida disse que uma das garantias de que o atual modelo não vai entrar em colapso é o grau de competitividade da democracia brasileira.

Maria Hermínia vê problemas numa democracia cujo vigor empírico não é compartilhado por parcelas representativas da sociedade. Apoia-se no terço dos brasileiros que diz poder passar sem partido ou Congresso (Latinobarometro).

No debate anterior, o filósofo Marcos Nobre dissera que as ruas de junho haviam mostrado o rechaço ao consenso. Situou o Plano Real como o início de uma cultura política da governabilidade. A agenda de implementação de direitos, que um dia interrompida foi pelo golpe, hoje estaria sendo barrada pelas supermaiorias ou pelo pemedebismo, como Nobre nomina o conservadorismo pós-Real.

O fosso maior entre a dominância do Executivo no Congresso e o êxito de suas propostas é, no mínimo, uma luz amarela para as supermaiorias.

Ausente do seminário, o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos mandou o texto de sua intervenção. Situa em 2002 o início de um processo de inclusão continuada e mediada não apenas por partidos e Congresso mas por sindicatos e organizações que acompanham o crescimento e a complexidade do país.

As manifestações seriam mais uma forma de representação, impulsionadas pela revolução digital, a competir com as instituições clássicas sem as colocar em xeque. Santos cita um censo mundial dos protestos de 2013 para dizer que o eco contra as instituições que moveram o século XX rumo à inclusão os aproxima de históricos movimentos de esquerda que, órfãos da utopia socialista, fazem uso da violência para desmoralizar a democracia.

Naquela tarde, o ministro da Fazenda se reunia com empresários insatisfeitos com a MP 627, que tributa lucros de empresas brasileiras no exterior.

Esta MP é um dos principais motivos do azedume empresarial com o governo. Queixam-se de terem sido prejudicados ao se internacionalizarem, seguindo o apelo de governos petistas por multinacionais brasileiras. O governo argumenta que essa expansão facilitou a triangulação de lucros para evitar a tributação.

No Congresso a MP foi parar nas mãos do líder do PMDB na Câmara, o deputado Eduardo Cunha (RJ), aquele que abre aspas para dizer que o vice-presidente da República não manda na bancada.

Como todos os projetos que chegam às suas mãos, a MP 627 protagonizou um contraponto àquilo que FHC chamou de presidencialismo de cooptação. O governo foi obrigado a recuar.

Cinquenta anos atrás, o presidente João Goulart resolveu regulamentar a lei de remessa de lucros, aprovada dois anos antes. O país ainda não produzia multinacionais, mas atraía muitas. A lei considerava capital nacional o lucro obtido no país e fixava o limite de remessas em 10% do capital dessas empresas.

A maior oposição a essa proposta vinha do embaixador americano, Lincoln Gordon, cujo fomento ao golpe é fartamente documentado. A lei foi assinada em 20 de janeiro de 1964. Setenta dias depois, Jango caiu.

Se Cunha é o preço a pagar para que uma lei possa ser negociada sem abalar a República, a democracia, a despeito - ou por causa - das saudáveis divergências de seus pensadores e governantes, está saindo barata, o que não impede o eleitor de pedir um desconto.

Incerteza
Chance, possibilidade e cenário pertencem ao léxico de quem lida com eleições, bem-vinda que é a incerteza do seu resultado. A despeito disso, o texto publicado na semana passada neste espaço deixou em alguns leitores a percepção de que o economista e analista político Alexandre Marinis, sócio da consultoria Mosaico, lida com a inevitabilidade de uma vitória em 1º turno. Marinis esclarece que ainda é cedo para determinar com segurança as reais chances de a eleição presidencial ter turno único e que, por ora, continua a trabalhar com o cenário central de decisão em dois turnos.

Maria Cristina Fernandes é editora de Política.

Fonte: Valor Econômico

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