segunda-feira, 24 de março de 2014

Renato Janine Ribeiro: Entre a festa e a violência

Políticos ignoram protestos de rua do ano passado

Será por acaso que o ano começou com os rolezinhos de janeiro e prosseguiu com os black blocs em fevereiro? Antes do carnaval, reza uma frase mais espirituosa do que verdadeira, nada acontece no Brasil. Pois aconteceu, sim. Primeiro, a festa dos pobres entrando, em multidões, nos shopping centers, não envergonhados, mas orgulhosos de ocuparem esses templos do consumo, dos quais eram barrados por seguranças da mesma classe social que eles. E depois as manifestações violentas de minorias, provavelmente de classe média, contra "tudo o que está aí". Essa expressão nem foi usada, mas não precisava.

Minha tese é que o Brasil está reclamando, ainda que de maneira confusa, porque as exigências inéditas levadas às ruas de maio a julho de 2013 não foram atendidas, ou não deram os frutos esperados. Sim, não se melhora do dia para a noite o ônibus, o metrô, o trem de subúrbio, o hospital, a escola, a polícia. Mas as pessoas sequer sentem as mudanças começando. Tudo isso dá uma sensação de déjà vu, de repetição. Um ano atrás, era o pedreiro Amarildo, que sumia, hoje é Cláudia da Silva Ferreira, assassinada de maneira cruel. Leiam notícias sobre esses temas: não saberemos dizer quais são do ano passado, quais deste ano. Entre os políticos, o mesmo presidente do Senado que, em pleno período de protestos, usava a FAB para ir a um compromisso de prazer, agora utiliza um jatinho para implantar cabelos.

Seria injusto culpar um único ator político - tão injusto quanto culpar, indiscriminadamente, a todos - pelas promessas não cumpridas de 2013. Em São Paulo, o prefeito Fernando Haddad tentou aumentar o IPTU dos mais ricos, o mesmo que fez o democrata ACM Neto em Salvador, só que o paulistano foi barrado no seu intento pela Fiesp. Por isso, para melhorar o transporte público, a única medida importante que ele pôde adotar foram as faixas exclusivas para ônibus, que de fato reduzem o tempo de viagem de quem usa os coletivos. Mas seria preciso muito mais.

E aí está o problema. Em junho de 2013, a sociedade brasileira passou por um minicurso intensivo de politização dos problemas do cotidiano, que eu e vários analistas comparamos ao maio de 1968 francês. O Brasil tem uma sociedade despolitizada, o que se expressa sobretudo pela constante redução dos problemas políticos a questões morais - como se ser ético fosse "a" qualidade de um homem público, quando não é mais do que sua obrigação. Ser ético é necessário, não é suficiente. Mas nosso debate público foi e é pobre - facilmente descamba para o insulto, a gritaria. E no entanto vivemos um inverno de descontentamento, sim, mas de muita esperança. Foi bonito.

Só que, quando os frutos não vêm, o Brasil retorna a seu funcionamento padrão, ao modo de segurança, como um computador que falha na inicialização e fica na operação básica. Estou cada vez mais convencido de que nosso país oscila entre dois polos do consumo - a festa e a violência. Os rolezinhos são a festa, os black blocs, a violência.

No consumo, literalmente consumimos o objeto, e isso vale tanto para o prazer quanto para o ódio. Consumimos comida, bebida, sexo. Uns consomem pessoas - são os violentos, predadores ou criminosos. O consumo exige sempre mais. Lembro o professor Antonio Candido, anos atrás, comparando já não lembro o quê àqueles dragões de história em quadrinhos, vorazes, que precisam comer toneladas de pão de ló... Pois o consumo é assim: nada o satisfaz, nada dura muito tempo. Por mais que a gente coma, daí a umas horas deseja ou precisa de mais. Idem com o predador. Ele necessita sempre de novas presas. O problema é que o consumo não basta para construir. Ele é fundamental na economia, mas precisa de seu irmão inimigo, a poupança, e também da produção. Na vida social, se não houver educação, o consumo se torna cada vez mais predatório, destrói a natureza, até as relações humanas.

Mas é claro que uma coisa é a festa, a alegria, outra a violência. O que me faz aproximá-las é que ambas, no Brasil, passam ao largo da política. E além disso, este ano, parece que elas vão convergir na Copa do Mundo. Esta era para ser a grande festa nacional. O Brasil é o país do mundo que mais se identifica com o futebol. Seleções europeias podem derrotar a nossa, mas sentimos um misto de obrigação e direito, a cada quatro anos, de disputar, não uma classificação honrosa, mas a vitória. Somos o único país que esteve em todas as Copas, o primeiro a levar a Taça Jules Rimet para sua posse definitiva e, mesmo assim, até hoje sediamos apenas um evento, menos do que o México. Um ano atrás, passaria por louco quem dissesse que a Copa não seria uma enorme festa. Hoje, pode vir a ser o palco de muita violência - neste vaivém constante entre ela e a alegria.

Jorge Amado, jovem, escreveu o romance "O país do futebol". O título era depreciativo. Os protestos atuais contra a Copa podem ser entendidos assim: cansamos de ser o país do futebol. O circo não vai mais preencher a falta de pão. A exigência de padrão Fifa para escolas e hospitais é corretíssima. Mas não endosso a violência nem a sabotagem de um compromisso assumido pelo Brasil. Em outras palavras, me recuso a apoiar a violência contra a festa. Posso, porém, ver a violência nas manifestações deste ano como um sintoma importante: a paciência está acabando. É um risco bastante elevado ignorar essa advertência e continuar o "business" político "as usual". O que me choca mais é a relativa indiferença de tantos políticos a esse esgotamento das expectativas. Enxergam a advertência escrita na parede e nada veem.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

Fonte: Valor Econômico

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