sábado, 26 de abril de 2014

Rolf Kuntz: O Brasil do banquinho de três pernas

- O Estado de S. Paulo

Monteiro Lobato criou um símbolo perfeito para o governo comandado pela presidente Dilma Rousseff, ao sintetizar no banquinho de três pernas o mobiliário e as ambições do caboclo. Para que quatro pernas, se três o sustentam e ainda evitam o trabalho de nivelamento? Os banquinhos do governo estão desenhados com perfeição nos principais indicadores e projeções da economia nacional, aceitos comodamente pelo grupo no poder. O aumento de preços na vizinhança de 6% é um bom exemplo de como funciona essa filosofia de Jeca Tatu.

O ministro da Fazenda, Guido Mantega, prometeu nesta semana, para o fim do ano, uma inflação dentro do limite de 6,5%, ponto extremo da margem de tolerância. A taxa anual até poderá ultrapassar essa marca nos próximos meses, mas em seguida - palavra de ministro - vai recuar e permanecer na área delimitada. Meta de 4,5%? Nem pensar, pelo menos por alguns anos.

Crescimento econômico? Muito bom, se chegar a 2,5% em 2013, como está indicado no projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias. Contas externas? O Banco Central projeta para o ano um déficit em conta corrente de US$ 80 bilhões, muito parecido com o de 2013 (US$ 81,07 bilhões) e ainda perto de 3,6% do produto interno bruto (PIB), onde tem permanecido, sem grande agitação, desde março do ano passado.

Forçado a se mexer para atiçar o fogo, e de vez em quando provocado, o governo-Jeca se compraz na recitação monótona de façanhas discutíveis e ainda se permite, de vez em quando, alguma bravata. Uma das preferidas é a comparação das contas públicas brasileiras com as dos países mais avançados. Mas até essa lenga-lenga está ficando insustentável, porque os governos do mundo rico, menos propensos ao comportamento de Jeca Tatu, andaram tomando providências para melhorar as finanças. Resultado: o Brasil ficou muito pior na foto.

Segundo o Eurostat, o escritório de estatísticas da União Europeia, os 28 países do bloco reduziram seu déficit fiscal para a média de 3,3% do PIB no quarto trimestre de 2013. Nos 18 países da zona do euro a média diminuiu para 3%.

No Brasil, o déficit nominal das contas públicas (resultado total, como se mede em quase todo o mundo) ficou em 3,26% do PIB no ano passado e chegou a 3,3% nos 12 meses terminados em fevereiro deste ano. Não dá mais para esnobar os europeus, se forem consideradas aquelas médias.

Mas a bravata é igualmente insustentável quando se considera a maior parte dos resultados individuais. Em 18 dos 28 países do bloco maior o resultado fiscal de 2013 foi melhor que o brasileiro. Entre os 18 estão duas das maiores economias, a Itália, com 3% de déficit, e a Alemanha, com zero. Em quase todas as outras os resultados melhoraram de forma consistente entre 2010 e 2013. Além disso, também as economias mais afetadas pela crise começaram a vencer a recessão e suas perspectivas são de maior crescimento nos próximos anos.

Mas a dívida pública brasileira, pode insistir algum dirigente brasiliense, é menor que a da maior parte dos europeus como porcentagem do PIB. É verdade, mas esse argumento seria muito mais relevante se a classificação de risco do Brasil fosse tão boa quanto a desses países e se, além disso, os títulos brasileiros fossem aceitos no mercado com as taxas de juros cobradas dos governos europeus.

Além disso, ninguém acusou esses governos de ter recorrido a criatividade contábil para fechar seus balanços nos últimos anos, nem a truques para disfarçar indicadores incômodos, como a taxa de desemprego. Lances desse tipo têm sido frequentes no Brasil, mas em geral para outras finalidades. Empenhado em administrar os índices, em vez de cuidar da inflação, o governo tem controlado os preços dos combustíveis e recorrido a prefeituras e governos estaduais para conter as tarifas do transporte público. Além disso, forçou a contenção das tarifas de energia elétrica, impondo perdas a empresas do setor e pesados custos adicionais ao Tesouro.

Inútil no combate à inflação, essa política fracassada e desastrosa ainda levou o governo a tentar novas mágicas para disfarçar seus efeitos fiscais. Uma das saídas foi a montagem de um estranho esquema de financiamento bancário - R$ 11,2 bilhões - à Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), uma entidade sem fim lucrativo e sem garantias próprias para oferecer aos bancos. A garantia será dada pelas distribuidoras e dependerá das tarifas cobradas. O custo será incluído no cálculo das novas tarifas a partir de 2015. Toda essa complicação, incluídos os juros do financiamento, seria evitada sem a demagogia da contenção de tarifas.

Políticas desse tipo são tão eficientes quanto as rezas de benzedeiras em atividade nas Itaocas de Monteiro Lobato. Sua serventia principal é poupar à autoridade - o Jeca de plantão - o trabalho de pensar seriamente e de enfrentar tarefas desagradáveis. Sem disposição para fazer o necessário, resta ao caboclo em função pública inventar meios de contemporizar e de empurrar os problemas para a frente. Inflação longe da meta de 4,5% em 2015 e crescimento econômico de 3%, também indicados no projeto da LDO, combinam com a filosofia do tripé.

Alguns se deixam contaminar pelo conformismo do Jeca e até enganar por sua esperteza rasa. A conversa sobre a criação de empregos é parte dessa esperteza. As demissões na indústria e a baixa qualidade dos postos criados no setor de serviços são temas postos de lado, assim como se tentou fazer com a pesquisa continuada por amostra domiciliar. Esta pesquisa - coincidência notável - vinha apontando taxas de desemprego maiores que as da pesquisa tradicional, mais limitada territorialmente. Para que pensar em modernização econômica, educação séria e criação de empregos decentes, se é muito mais cômodo levar adiante a conversa mole?

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