quarta-feira, 28 de maio de 2014

Graziela Melo: A última noite de Boa Hora

A noite que descia sobre a cidade, era igual às outras. Quatorze mil e seiscentas noites já se haviam passado na vida de Francisco Boa Hora, desde que viera ao mundo, incluindo aí aquela em que nascera, pois nascera de noite e a isso atribuía o seu azar eterno, insistente e pegajoso.

Desde que perdera, em uma noite de torrentes, a mulher, a filha e o barraco, que perambulava pelas marquises da cidade carregando seus andrajos e Tomé, o cão fiel que sobrevivera a avalanche e lhe lambia as dores da alma, com grunhidos de carinho. Sentia os sofrimentos do amo. Mais: os partilhava. Lembrava o faro do barraco, da menina pequena, de Maria , dos molhos de carne de porco e da barraca de cachorro quente bem na porta da cozinha Agora ambos viviam do lixo. Fundos de restaurantes, escritórios, restos de "quentinha" Almoços de executivos eram as melhores sobras da cidade. Mas muito difíceis de conseguir. Grupos poderosos e organizados formavam verdadeiros cinturões nos fundos dos melhores pontos. Cartéis de mendigos privilegiados por garçons em troca de propina, impediam que avulsos como ele e Tomé se aproximassem. Consolavam-se com as lanchonetes dos empregados do comércio, do "baixo clero" dos escritórios. Ou seja, pedaços de salsicha, ovo, um ou outro troço de carne. Ia levando. De noite, para se consolar e conseguir pegar no sono pensava na mulher morta, no rosto redondo, gorducho da filha, no aconchego do barraco. A fortuna perdida no barro e na lama. Pior que a fome eram as noites de chuva quando seguranças dos prédios os expulsavam para longe das marquises. Aí sim. A vida se transformava num inferno líquido úmido e gelado que lhe escorria pelo corpo sujo e o fazia tiritar.

O que fizera de mau na vida? Por que tinha que pagar tantas penas? Que pudesse se lembrar, sempre fora honesto. Desde o avô, o pai que só o bem lhe ensinaram na vida, nunca roubara um tostão de ninguém. Nunca pisara na pata de um bicho, nem saltara o muro de quem quer que fosse. Nem mesmo quando esteve premido pela fome. A fome verdadeira, sem remédio até que lhe dava esse direito. Mas nunca fez, nem disso se arrependeu. A fome que passara, já passara. Não lhe aperreava mais. Pior era a de agora. Perdera o emprego dois dias depois do enterro da mulher e da filha. Bebera duas garrafas e ficara uma noite e um dia inteiro arriado no ultimo andar da construção. Quando acordou o mestre de obras já havia mandado dar baixa na sua carteira

Aí nunca mais parou: pedia para beber e bebia para pedir. No dia que não bebia (alguns) se sentia melhor. Mais aceito pelo mundo. Mas aí, não tinha coragem de pedir e outra vez voltava ao círculo. Não era bem um alcoólatra. Bebia por necessidade absoluta. Imperiosa. Era assim que administrava a vida. A dor. O desconforto da rua. O ser nada e o nada ser. A falta de amanhã. O vazio do hoje. A saudade aguda, o desprezo dos homens. A vida se lhe transformara em um pacote de asperezas tão pesadas e insolúveis, que já não se sentia mais preso a ela Vislumbrava a morte como a porta do alívio. Mas nunca pensara em se matar. Sabia-se um covarde, miseravelmente preso ao mundo por um invisível cordão umbilical. O instinto, talvez.

Já rodara uns cinco quilômetros sem destino certo, de um lado para outro à procura de um lugar para dormir com Tomé. Dera dois quibes ao cão. Ficara com um simples pedaço de pizza. Fora tudo o que conseguira para o jantar. Já muitos bares começavam a arriar as portas. A noite de sexta ia avançada. Alguns becos estavam mais escuros. Encostou-se em um muro velho num dos lados mais antigos do centro, próximo a dois tonéis de lixo. Recolheu, junto aos latões, sacos de estopa que lhe podiam servir de cama. Entrouxou-os. Acocorou-se bem ao pé do muro, e esperou, pacientemente que o bar, do outro lado do beco fechasse a porta. Ali tinha uma boa marquise que os protegeria do sereno e não havia segurança. A lua se deixava entrever no topo dos arranha céus. Transeuntes passavam apressados, indiferentes à sua expectativa miúda, ínfima, pequenina. 

A meia noite o beco transformou-se num recanto sombrio e silencioso. Restavam apenas as luzes da rua e os letreiros luminosos. Um ou outro boêmio retardado com os bares fechados os rincões mais escondidos mergulhavam na penumbra. O ultimo empregado saiu pelas portas do fundo. Boa Hora recolheu o saco de andrajos, as estopas, atravessou o beco com duas passadas e sentou-se no batente, bem atrás da banca de jornal. Do saco tirou um meio pedaço de espuma e estendeu-a no chão cobrindo-a de ponta a ponta com uma das estopas que pegara no lixo. Sacudiu a segunda que seria seu lençol. Dobrou a terceira em quatro. O travesseiro. Pronta a cama, Boa hora tomou os últimos goles de cachaça que carregava numa garrafa de Coca-Cola, no bolso do paletó. Deitou-se com a impotência dos desgraçados e a dor dos infelizes sem saber que aquele era o ultimo ato de sua vida. Pegou num sono profundo e não sentiu quando seu coração cansado pelo sofrimento, pelo abandono de tantos e desgastado pelo álcool, parou de bater. E ali permaneceu inerte como se dormisse.

Aos primeiros raios do sol da manhã a cidade começou a acordar. Boa Hora continuava imóvel, hirto, já liberto de todos os males que padecera no mundo.

O empregado que saíra por último à noite, retornou e levantou a porta de aço do bar, rente com a soleira. O corpo de Boa Hora rolou até a calçada. O garçom se assustou. Pessoas que passavam pararam para ver. O que foi isso? Alguém perguntou. É um homem morto.

Ao lado do amo frio e sem voz, Tomé chorava suas primeiras lágrimas de cão sem dono.

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