segunda-feira, 2 de junho de 2014

Ricardo Noblat: Para jamais esquecer

“Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista” Dom Helder

- O Globo

“Prova de amor maior não há, do que dar a vida pelo irmão”, cantaram emocionadas centenas de pessoas que lotavam na noite do dia 27 de maio de 1969 a Matriz do Espinheiro, no Recife.

No altar, 40 padres celebravam missa liderados por dom Hélder Câmara, arcebispo de Recife e Olinda. Um pouco abaixo do altar, dentro de um modesto caixão, jazia o corpo do padre Antonio Henrique Pereira Neto, 28 anos.

Na véspera, depois de sair perto da meia noite de reuniões em casas de duas famílias no bairro de Parnamirim, padre Henrique, assessor de dom Hélder e responsável pela Pastoral da Juventude da arquidiocese, foi sequestrado por quatro ou cinco homens que o levaram numa Rural Willis para uma área deserta a 30 quilômetros do centro da cidade. Ali seria martirizado.

A perícia do corpo concluiu que Henrique, padre há três anos, fora amarrado com uma corda e arrastado. Uma faca ou coisa parecida feriu-lhe o rosto várias vezes. A violência sofrida por ele concentrou-se na cabeça.

Ela foi chutada. A corda enlaçada em seu pescoço acabou por asfixiá-lo. Por último, deram-lhe três tiros na cabeça - um deles na garganta.

Tamanha demonstração de ódio tinha um endereço certo, e o padre não passou apenas de um meio para alcançá-lo.

O alvo indireto do crime, um dos mais bárbaros da ditadura de 1964, foi dom Hélder, amigo pessoal do então Papa Paulo VI, apontado pelo regime como um perigoso comunista. Em Paris, no ano seguinte, dom Hélder denunciaria torturas a presos políticos no Brasil.

O Palácio dos Manguinhos, onde ele despachava, havia sido pichado com mensagens assinadas pelo Comando de Caça aos Comunistas.

Ocorrera o mesmo com a parte dos fundos da igreja das Fronteiras, onde dom Hélder morava. Assim como com o Juvenato Dom Vital, local de reuniões dele com seus pares nordestinos.

Um homem arrependido já confessara a dom Hélder que fora contratado para matá-lo.

“Querem que eu me proteja”, pregou o arcebispo na missa que antecedeu no dia seguinte a saída do cortejo que levaria a pé o corpo de Henrique para ser enterrado no cemitério da Várzea.

“Querem que eu não ande só à noite, e que não durma só. Mas quem disse que eu ando só? Andam e dormem comigo o Pai, o Filho e o Espírito Santo”. Entre oito mil e 10 mil pessoas seguiram o caixão.

De vez em quando, policiais irrompiam no meio delas para fazer prisões. Prenderam o ex-ministro da Agricultura do governo João Goulart, o deputado Oswaldo Lima Filho.

Prenderam Paulo Cavalcanti, um dos cabeças do Partido Comunista Brasileiro em Pernambuco. Prenderam estudantes que carregavam uma faixa onde se lia: “Os militares mataram padre Henrique”.

O cemitério estava cercado por policiais militares. Depois do enterro, temendo o pior, dom Hélder pediu à multidão que fosse embora sem se manifestar. E se pôs, sozinho, diante da tropa, a acenar para as pessoas com um lenço branco.

Foram longos minutos de silêncio e de medo até que todos se dispersaram. Censurada, a imprensa nada publicou sobre a morte e o enterro do corpo do padre.

Na semana passada, a Comissão da Verdade, seção de Pernambuco, concluiu que a morte de padre Henrique foi um crime político.

Participaram dele estudantes de direita e investigadores da polícia civil sob o comando de Bartolomeu Gibson, na época Chefe de Investigações da Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco.

Dos criminosos, restam dois vivos. A Lei da Anistia impede que sejam punidos.

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