quinta-feira, 3 de julho de 2014

Luiz Carlos Azedo - O sol na peneira

• A Lei da Anistia é um pacto pela democracia, mas os familiares dos desaparecidos têm o direito de saber toda a verdade sobre o que aconteceu com os entes queridos

- Correio Braziliense

Coube a Aureliano Chaves, então vice-presidente da República, o primeiro alerta de que o regime militar estava entrando num beco sem saída. Ao fazer o balanço de perdas e danos das eleições de 1978 — mesmo com a antiga Arena elegendo maior número de deputados e senadores (quase um terço dos quais "biônicos") graças às mudanças nas regras do jogo impostas pelo chamado Pacote de Abril de 1977 —, o político mineiro disse, com todas as letras, que "não adiantava tapar o sol com a peneira": o antigo MDB, de oposição consentida, obtivera no pleito cerca de 15,18 milhões de votos, contra 10 milhões do partido governista.

No ano seguinte, começou a lenta transição à democracia, com a aprovação da Lei da Anistia, em 1979, que proporcionou a volta dos exilados — entre eles, o trabalhista Leonel Brizola, o socialista Miguel Arraes e o líder comunista Luís Carlos Prestes, nenhum dos quais chegou ao poder — e a libertação dos presos políticos. Fora um acordo entre as forças políticas no Congresso, onde já havia uma maioria favorável à redemocratização do país, embora isso não se expressasse claramente porque estava instalada a disputa que desaguaria na campanha das Diretas, Já e na eleição de Tancredo Neves, em 1985, no colégio eleitoral.

Deu-se início, então, a uma transição pactuada entre os políticos e os militares, com avanços e recuos, na qual a chamada anistia recíproca foi uma espécie de salvo-conduto tanto para os agentes dos órgãos de segurança responsáveis por torturas e assassinatos quanto para os ex-militantes da luta armada que haviam praticado assaltos a mão armada, sequestros de diplomatas e alguns crimes de morte.

Esse pacto é considerado "imexível" pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas é questionado por familiares dos oposicionistas desaparecidos e vítimas de tortura sempre que uma informação nova confirma a suspeita de que houve assassinatos e tortura em dependências militares ou em instalações clandestinas à disposição dos órgãos de repressão. Depoimentos de vítimas e documentos oficiais que surgem por caminhos mais diversos, como, por exemplo, os arquivos do Cenimar em poder da Comissão da Verdade, vão compondo um mosaico de informações que colocam em xeque o posicionamento oficial a respeito de assunto tão delicado.

Documentos oficiais
Recentemente, por exemplo, as Forças Armadas silenciaram sobre os assassinatos e casos de tortura ocorridos em suas unidades durante a ditadura militar (1964-1985) em investigação interna realizada a pedido da Comissão Nacional da Verdade. Exército, Marinha e Aeronáutica afirmaram que não houve desvio de finalidade nas unidades e que as sete instalações citadas no pedido de investigação funcionaram no período de acordo com a legislação vigente à época. É aí que vem ao caso a frase de Aureliano Chaves: estão tapando o sol com a peneira.

Ontem, a Comissão da Verdade divulgou os documentos que recebeu do Departamento de Estado, órgão governamental responsável pelas relações externas dos EUA, e que foram enviados em 20 de junho. Segundo a comissão, 18 desses documentos se tornaram acessíveis em 19 de maio deste ano, e os outros 25, entre 2005 e 2009.Sem o caráter sigiloso, é permitido a qualquer cidadão no país acessá-los. Basta um pedido, feito por meio da Lei de Liberdade à Informação, encaminhado ao Departamento de Estado.

O compartilhamento dessas informações fora anunciado pelo vice-presidente dos EUA, Joe Biden, durante visita a Brasília, na qual se encontrou com a presidente Dilma Rousseff. Os documentos estão na rede a podem ser consultados por qualquer pessoa. Mostram que houve, sim, tortura e morte em quartéis de nossas Forças Armadas. Em tempo: estou entre os que defendem o respeito à Lei da Anistia, um pacto pela democracia, cuja essência é o perdão a todos aqueles que cometeram crimes durante o regime militar, mesmo os de sangue. Os familiares dos desaparecidos, porém, têm o direito de saber toda a verdade sobre o que aconteceu com os entes queridos.

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