sábado, 5 de julho de 2014

O preço das alianças

• "As manifestações de junho expõem a profunda insatisfação da população com o sistema político. Isso não é passageiro"

• "O magnetismo que o governo do PT exercia sobre os partidos diminuiu. Governos muito longos são desgastantes"

Diego Viana - Valor Econômico

SÃO PAULO - No contexto de uma eleição marcada pela insatisfação popular com a representação política, um dos fenômenos políticos mais importantes é a ascensão do Partido Socialista Brasileiro (PSB) ao ponto de se qualificar, em princípio, para disputar uma vaga no segundo turno e alterar a correlação de forças políticas no Brasil. É a opinião do cientista político Leonardo Avritzer, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Associação Brasileira de Ciência Política.

Para Avritzer, a presença da aliança entre Eduardo Campos (PSB) e Marina Silva no pleito soma-se a outros fatores significativos para os resultados da eleição de outubro, como o desgaste dos 12 anos de governo petista, que começa a desfazer a ampla aliança da eleição de 2010, e o desafio que o candidato tucano, o senador mineiro Aécio Neves, enfrenta para nacionalizar uma liderança ainda estadual.

Ao fim de um período em que um possível fracasso da organização da Copa do Mundo, incluídas as obras de infraestrutura, era um assunto de temores públicos e debates políticos, a conclusão do torneio abre as portas para o período eleitoral. Embora a questão da Copa tenha sido politizada tanto pelo governo quanto pela oposição, Avritzer entende que ambos erraram, ao não perceber que o tema dizia respeito a um compromisso não do governo, mas do país.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista com o cientista político, que analisa o possível impacto da recente ascensão do PSB sobre o quadro eleitoral, a relação das manifestações de rua com o sistema político e os possíveis cenários para a disputa de outubro.

Valor: O governo trata o fato de não ter havido o caos anunciado para a Copa como grande ativo político, porque a oposição teria apostado nesse caos. A ausência de caos é trunfo político?

Leonardo Avritzer Quando o Brasil assumiu o compromisso de realizar a Copa, foi um compromisso administrativo importante para um país que, dentre os principais países em desenvolvimento, tem a pior infraestrutura. À medida que as obras foram atrasando, parecia que o governo ia descumprir amplamente um compromisso internacional, o que o desgastaria. Isso significaria, talvez, algum ganho para a oposição. Nenhuma das duas coisas se confirmou e acho que tanto o governo quanto a oposição erraram. O governo errou por gerir de forma deficiente as obras. A oposição errou por achar que esse era um compromisso do governo, quando era um compromisso do país.

Valor: A ampla aliança de 2010 que elegeu Dilma Rousseff está fora de cogitação para 2014, com a saída do PSB e do PTB, e uma série de palanques locais se afastando do PT. Aécio Neves chegou a sugerir que esses partidos "sugassem" o máximo antes de mudar de lado. Em que medida isso pode ser decisivo?

Avritzer: Neste presidencialismo de coalizão fragmentado, fazer alianças é bom e ruim. É bom porque é difícil governar sem maioria no Congresso. Mas o preço dessa maioria é ruim para o país. Sabemos quais são os partidos ligados às falhas nas obras de infraestrutura para a Copa, por exemplo. Não é bom ter alianças tão amplas, mas elas garantem tempo na TV e uma certa governabilidade. É infeliz a frase de Aécio. O "sugar" não diz respeito ao governo, é sugar o país. O preço das alianças amplas é a ineficiência da máquina pública. Se for eleito, é Aécio quem vai ter que lidar com esse problema. Uma das grandes dificuldades do país é um centro apolítico fisiológico representado por alguns partidos. Vamos pensar nos ministérios de que esses partidos gostam, como Transportes. O PR é "especializado" nesse ministério. São concessões de rodovias e coisas muito importantes para o país. A melhoria do corredor de exportação da soja, por exemplo. Esse "sugar" significa problemas na gestão da economia.

Valor: O PT, em 2010, parecia ser um grande ímã de alianças, mas essa fratura parece indicar que a força de atração diminuiu. O que houve?

Avritzer: O magnetismo que o governo do PT exercia sobre os partidos diminuiu nesses últimos 12 a 18 meses. A teoria da democracia diz que governos muito longos são desgastantes. O revezamento no poder exerce um equilíbrio sobre os vícios que o poder provoca. No caso do PT, há desgastes, seja na organização da máquina pública e dos ministérios, seja na relação com os partidos. Que partidos estão saindo? Alguns grupos estão entre os mais fisiológicos da política brasileira. A saída não é necessariamente ruim para a aliança governista. Pode trazer um pouco de coerência.

Valor: O PSB lançou Eduardo Campos candidato a presidente. Ele é um candidato forte para chegar ao segundo turno?

Avritzer: Ele está procurando uma posição num sistema muito polarizado, que não o favorece. O apoio a Lindbergh [Farias, do Partido dos Trabalhadores] no Rio faz sentido em sua trajetória política, mais do que a aliança com [o governador tucano Geraldo] Alckmin em São Paulo. Mas o problema central de Campos é que é muito difícil chegar ao segundo turno sem um apoio significativo em São Paulo. Marina Silva ajuda ou atrapalha? É cedo para dizer. Ele é pouco conhecido da população e a aliança com Marina também. Talvez o fenômeno partidário mais relevante no Brasil seja o crescimento do PSB. Desde 1994, consolidamos um sistema de dois grandes partidos que governam e dois grandes partidos que os auxiliam a governar. O PSB, dependendo de seu desempenho, pode ser uma novidade.

Valor: Se o PSB chegar ao segundo turno, deixando de fora o PSDB, será a primeira vez, desde 1994, que o PSDB não estará nessa fase da eleição. A novidade poderá ter consequências na política brasileira?

Avritzer: Para muitos cientistas políticos, o sistema democrático só é consolidado quando os mesmos partidos disputam o poder. Tenho dúvidas. A Espanha, por exemplo, está numa crise política e econômica profunda. E está surgindo um novo partido. Isso tem a ver com a insatisfação da população. No Brasil, uma parcela da população não está satisfeita com a polarização entre PT e PSDB. Um possível crescimento de Campos pode estar relacionado a isso. Seria uma novidade decisiva. O centramento em dois grandes atores gera uma previsibilidade necessária no sistema político. Os atores econômicos pedem isso. Mas não acho que o PSB esteja muito fora daquilo que se espera, seja pelos atores sociais, seja pelos econômicos.

Valor: O senhor escreveu em artigo que tornar-se conhecido fora de Minas Gerais é um grande desafio para Aécio Neves. Como lhe parece o senador como candidato que enfrenta uma máquina poderosa como a do PT?

Avritzer: Esta eleição é decisiva para ele. Ou ele se dá muito bem, não necessariamente ganhando, ou dificilmente vai manter uma liderança nacional. Os mineiros gostam de Aécio. Não está claro que gostem dos governos do PSDB. Existe um diferencial entre apoio político a Aécio e apoio a candidatos do espectro político ao qual ele pertence. É muito significativo esse diferencial. É difícil saber se ele vai conseguir nacionalizar a liderança local. É um desafio importante em São Paulo, dados os conflitos com [José] Serra e Alckmin. Ele tem características que não parecem se adequar ao eleitorado paulista, que é conservador nos hábitos morais. Outro problema é que ele não consegue ser uma liderança forte no Senado. O PSDB tem líderes mais importantes que ele no Senado, como Álvaro Dias.

Valor: Marina Silva foi o grande fenômeno de 2010. Depois desses quatro anos, pode-se dizer que ela soube aproveitar o impulso das urnas?

Avritzer: Marina enfrentou um problema comum na política, ao qual parece ter dado uma solução ruim: a diferença entre sua popularidade pessoal e a capacidade de transformá-la em estrutura organizacional competitiva. Recorrer à aliança com Campos colocou outros problemas para ela, problemas de coerência política. Ele tem uma política desenvolvimentista, que frequentemente não atenta para o meio ambiente. Seja sob o ponto de vista organizacional, seja do ponto de vista do campo político a que ela quer pertencer, a liderança de Marina Silva tem problemas hoje.

Valor: A aposentadoria de Sarney, anunciada na última semana, pode ser lida como uma página que se vira na política brasileira?

Avritzer: Desde a redemocratização, temos renovações importantes na política brasileira, como o crescimento do PSDB e do PT. Mas temos fortes continuidades, especialmente no campo do PMDB. Dentre elas, Sarney é uma das principais, com Renan Calheiros e outros. É um estilo de fazer política no Brasil que persiste. Alguns Estados ainda são muito clientelistas, outros menos. São máquinas políticas aliadas à mídia, especialmente à televisão. Essa concepção de fazer política está sob ataque no país, mas ainda não foi derrotada. A aposentadoria de Sarney está mais ligada à idade do que à decadência da liderança de seu grupo no Maranhão. É um grupo desafiado, existe mais oposição a ele hoje do que no passado, mas essas estruturas construídas na democratização, em torno de fortes alianças políticas e meios de comunicação, continuam vivas.

Valor: Com a burocratização, a aliança com o agronegócio e o apoio à repressão policial, os movimentos sociais e a esquerda militante, das ruas, sentiram-se alienados do PT, tratando-o por "ex-querda". Isso pode comprometer o partido?

Avritzer: Talvez o fato que melhor simbolize esse afastamento seja a saída da Marina Silva. Ela é claramente uma personificação dessa relação: líder ambientalista, que trouxe lideranças de movimentos sociais da Amazônia para o governo. Hoje, há dissensões no meio ambiente, na política indígena, nas políticas urbanas. Mas o afastamento é relativo. Ninguém ocupou esse espaço. Esses movimentos não são eleitoralmente significativos, mas são muito significativos do ponto de vista do espírito da opinião pública. Até o sentimento anti-Copa teve ligação com eles. Essa é uma questão para o PT: como retomar uma relação que foi positiva num período histórico muito significativo.

Valor: Caso o PT perca a eleição: o que acontece com um partido que passou a maior parte de sua história como oposição, foi governo, compôs com forças às quais tinha se oposto renhidamente, desenvolveu uma máquina eleitoral forte, afastou-se das bases sociais e voltou a ser oposição?

Avritzer: Certamente, implicaria muitas mudanças. Mas o PT tem tanto bases sociais fortes quanto capacidade de adaptação ao governo. Continuou fazendo convenções, continuou fazendo eleições internas diretas. Adaptou-se ao poder, é inegável, levando um conjunto de militantes para as estruturas do Estado. Talvez o lugar em que mais se adaptou tenha sido a estrutura parlamentar. De 2002 para cá, o perfil dos parlamentares do PT mudou muito. Eles se tornaram mais influentes. O PT faria o chamado "aggiornamento", a atualização da identidade partidária. Vai ter que readequar sua relação com as bases que deixou de lado. Vai ser um pouco menos governo, menos Estado, e um pouco mais movimentos sociais. Todos os partidos com origem em movimentos sociais fazem isso. O PSOE, na Espanha, o PS francês, o Bloco de Esquerda em Portugal.

Valor: Outra aposta é que a chamada classe C pode ser um fiel da balança na eleição, dependendo do que decidir: se continua apoiando as políticas às quais se atribui sua ascensão social ou se fica mais conservadora.

Avritzer: A ideia de que classes ascendentes se tornam conservadoras pode estar correta em relação à direção, mas esperar que isso se manifeste rapidamente é um equívoco. O melhor exemplo é a classe média que Roosevelt criou nos EUA dos anos 30. Ela foi votar nos republicanos nos anos 80, com Reagan. É um longo processo. Mesmo no caso dos EUA, até hoje eles são chamados de "swing voters", porque voltaram aos democratas com Clinton. Talvez essa seja a vocação da classe C. A principal preocupação dessas pessoas, hoje, é continuar sendo classe média.

Valor: Os protestos que começaram em 2013 deixaram marcas visíveis no sistema político?

Avritzer: As manifestações de junho expõem a profunda insatisfação da população com o sistema político. Isso não é passageiro. É uma característica estrutural da opinião pública que está se formando no país, que não se identifica com os partidos, é crítica do Congresso e acha, com razão, que a corrupção não é punida e o estrato político é privilegiado. Também já passou o tempo em que, no Brasil, o acesso a serviços públicos era a grande reivindicação. Não se trata mais de acesso. A questão, hoje, é a qualidade dos serviços. Essas questões estão aí para ficar e vão exigir que o sistema político as trate com seriedade. Acho decisivo, também, fazer uma reforma política. Quase um quarto dos senadores são suplentes que não foram eleitos. O sistema de financiamento entre grandes empresas e sistema político quase não tem controle. A política precisa se adaptar à nova sociedade que o Brasil já é, com mais informação e menos desigualdade.

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