segunda-feira, 28 de julho de 2014

Renato Janine Ribeiro: Um sistema sofisticado

• Governabilidade é condição para se eleger

- Valor Econômico

Vinte anos atrás, em 7 de junho de 1994, o Congresso promulgou cinco emendas constitucionais "de revisão", encerrando o processo previsto na Constituição de 1988, que mandava revisar a Carta cinco anos após sua promulgação. Para a revisão, o quórum era baixo - somente a maioria absoluta - enquanto as emendas constitucionais de praxe exigem maioria de três quintos. A inspiração veio da Constituição Portuguesa de 1976, a fim de verificar a cada cinco anos o que funcionava e o que não na lei suprema, de modo que ela fosse alterada de uma vez só e não aos pedaços. Mas nosso Congresso revisou apenas pontos secundários e aboliu a revisão periódica. Talvez por isso, talvez não, já emendamos a Carta 87 vezes.

A mais importante das emendas de revisão foi a de número 5, reduzindo o mandato presidencial de cinco para quatro anos. Faltavam quatro meses para a eleição e é provável que tenha sido aprovada para subtrair um ano de um eventual governo Lula, já que o líder petista era favorito absoluto para a Presidência da República. Três semanas após a emenda, porém, a implantação do Plano Real mudaria o panorama político, levando Fernando Henrique Cardoso à vitória. Preocupados com a inflação e com as eleições, os brasileiros não deram muita importância à EMC 5.

Mas ela introduziu uma mudança decisiva e radical nas eleições presidenciais. Pela primeira vez num século de República, a Constituição decretava a coincidência entre a eleição do Executivo e Legislativo federais. Na República Velha, os presidentes eram escolhidos por quatro anos, os deputados por três e os senadores por nove. Sob a Constituição de 1946, o mandato dos deputados subiu para quatro, o do presidente para cinco e o dos senadores baixou para oito. Assim, entre 1894 e 1930, quando ocorreram as eleições, ainda que fraudadas, da República Velha, e de novo entre 1945 e 1960, quando se realizaram os pleitos para presidente sob nossa então tímida democracia, só ocasionalmente coincidiram os mandatos.

Assim ainda se deu a eleição de Fernando Collor, em 1989. O Legislativo tinha sido renovado em 1986 e o seria de novo, com os governadores estaduais, no ano seguinte. Collor foi eleito sozinho. Este fato se somou a outros para eleger um cavaleiro solitário, um salvador sebastianista, um desconhecido. Uma novela do ano ("Que rei sou eu?") promovia a ideia do jovem príncipe que dava cabo de corte e cortesãos, que pela juventude e energia varria de cena o antigo regime. Só que o governo Collor deu no que deu.

Se FHC manteve alguns fins propostos por Collor - a estabilidade monetária, à época prioridade zero, e às privatizações - ele o fez recusando os meios: nada de surpresa ou de choque; tudo votado, anunciado. Substituiu, como já afirmei aqui, a épica (desastrada) pela prosa, até prosaica, mas bem sucedida, dialógica, democrática.

Ora, a EMC 5 acabou com surpresas nas eleições presidenciais. A coincidência das eleições federais, e delas com as estaduais, ancorou a escolha do presidente da República numa rede sólida de compromissos políticos no país inteiro. O sucesso no susto ficou impossível. Collor e alguns amigos seus, "outsiders" como ele, decidiram lutar pelo Planalto num jantar em Pequim, aproveitando um vácuo de opções políticas. Cenas primitivas como essa não são mais possíveis. Hoje, a Presidência é para "insiders". Não basta o candidato ter uma relação direta com os eleitores, pela mídia eletrônica: precisa de inúmeras mediações, acordos, compromissos, para concorrer com alguma chance.

Essa mudança nos marcou. Talvez o governo FHC fosse mais ou menos o mesmo, se sua eleição tivesse ocorrido à parte da escolha de legisladores e governadores. Mas os governos do PT, não. Lula poderia até ter conquistado mais cedo a Presidência, se não precisasse dessa capilarização de apoios. Talvez, dirigindo-se sem intermediários aos cidadãos, conseguisse vencer. Não creio muito. A força do PT, na oposição, estava nos movimentos organizados. Eles fazem uma importante intermediação entre o líder e a sociedade. Mas digamos que ele se elegesse, num pleito solteiro, talvez em 1989. Teria um Legislativo eleito em 1988. Viveria uma situação de total minoria. Precisaria fazer mais acordos, piores para o PT e para o país, do que de fato precisou.

Com eleições simultâneas, Lula percebeu que precisava dos acordos antes, não depois, da eleição. Essa decisão mudou o PT e o país. Acordos prévios à campanha podem ser mais baratos para a candidatura e a sociedade. Ele entendeu a necessidade de compromissos, inclusive um que tranquilizasse os mercados. A Carta aos Brasileiros, a histórica promessa de Lula respeitar os contratos, vem disso. Mudanças maiores ficam mais difíceis, desse jeito, que descontenta os radicais. Mas tem a vantagem de que mudanças, assim introduzidas, ficam. O governo eleito terá maior apoio.

Durante a campanha, descartam-se os candidatos que não passam numa complexa prova dos nove. Talvez eu, professor universitário, goste deste modelo porque lembra um pouco um concurso acadêmico - não por ser acadêmico, claro, mas por serem sucessivas provas, que tiram de cena quem não é apto: no caso, quem não terá apoio depois da eleição. Só consegue apoio para se eleger quem já o tem para governar. O Dia-D, da eleição, é marcado já pelos 1.440 days after que o presidente vai viver.

Por isso nosso modelo político, tão criticado, tem elementos sofisticados. É possível e preciso reformá-lo, mas para isso é necessário entendê-lo. Porque, não sendo assim, se corre o risco de piorá-lo, em vez de melhorá-lo.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

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