domingo, 24 de agosto de 2014

Merval Pereira: O papel dos partidos

- O Globo

Com o retorno da ex-senadora Marina Silva ao proscênio da vida política brasileira na disputa pela Presidência da República, está em debate a importância dos partidos na democracia representativa. Marina, em reunião com aliados no primeiro dia de candidata, insistiu no descrédito do que chama de “velha política” junto à opinião pública e ressaltou que a aliança que importa neste momento é com a sociedade, não com os partidos.

Em outra ocasião, disse que o presidente “não é propriedade de um partido. A sociedade está dizendo que quer se apropriar da política. E as lideranças políticas precisam entender que o Estado não é o partido, e o Estado não é o governo”. Sua velha amiga e agora coordenadora da campanha presidencial, Luiza Erundina, do PSB, fizera há algum tempo uma crítica a essa visão de Marina, que agora foi revivida na internet.

Erundina dizia, em síntese, que Marina, embora seja “uma pessoa maravilhosa”, “entra no senso comum da sociedade do ponto de vista de negar a política, de negar o partido. Tanto é que (criou) uma Rede, não partido. Acho que isso desorganiza, deseduca politicamente. Não há política e não há democracia sem partidos. Pode ser um partido dentro da concepção do que ela defende, mas não negando o partido, não negando a política”.

O tema foi também abordado esta semana pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em palestra no ciclo "Novos olhares" – Perspectivas políticas do século XXI: crise e reinvenção da democracia –, na Academia Brasileira de Letras, sob a coordenação do historiador José Murilo de Carvalho. Segundo Fernando Henrique, “se quisermos repensar a democracia não podemos cair na armadilha de achar que com menos liberdade e com autoritarismo se vá conseguir. É preciso reafirmar que não se trata de cancelar a democracia representativa, mas de ampliá-la, de encontrar mecanismos que possam comunicar a democracia representativa com as outras formas de manifestação da sociedade”.

Ele ressaltou que alguns passos já estão sendo dados, que não há lei importante que não seja apresentada na internet para consulta pública, ou mesmo decisões que são tomadas após audiências públicas. “Geralmente quem se apresenta para opinar são os grupos de interesse, daí a necessidade de ter mecanismos de representatividade, como é o Congresso”, comentou.

O risco, advertiu, é fazer isso de forma autoritária.

“O decreto criando os conselhos populares é o oposto disso. É o Estado tentando organizar a sociedade civil, um passo para aumentar o grau de controle do Estado sobre o indivíduo”.

As transformações havidas na sociedade foram de tal natureza, e o empoderamento do indivíduo é crescente de tal maneira, que os partidos ficaram limitados diante das expectativas gerais que existem”,
disse.

“Estamos em uma época em que é preciso fazer uma releitura da pessoa”, lembrou o expresidente.

“Não se trata da volta ao individualismo, quem está ligado a uma rede está opinando, é parte daquilo, mas tem sua individualidade. Nada a ver com ser do partido e seguir a orientação geral”.

O mundo contemporâneo implicaria preservar essa capacidade de escolha e ao mesmo tempo fazer parte, ter uma identidade, que é global. “Sonho, talvez, mas uma possibilidade que se divisa como nunca antes.

Acrescentar ao interesse de pessoa, ao de uma classe, de nação, o que diz respeito a uma comunidade mais
ampla, à Humanidade”. Mas Fernando Henrique disse não acreditar que sem as instituições esses mecanismos tenham condições de duravelmente afetarem o comportamento das pessoas. “Acho que é preciso prestar atenção à representação, a despeito de todas as dificuldades, é preciso tentar dar vida aos partidos. E fazer com que os partidos tomem partido. Como eles partem de uma posição de apenas querer votos, não tomam partido, e ao não tomar partido as pessoas não acreditam no que dizem”.

“Os partidos passaram a ser um agregado de pessoas que querem um pedacinho do orçamento. O sistema é corrompido. Isso é a deterioração da democracia representativa”, insistiu Fernando Henrique. Para ele, reinventar a democracia é um processo social em curso.

Mas fez uma ressalva: “a cultura política brasileira precisa ser alterada, sem essa mudança nada acontecerá. E essa mudança cultural se dá pela exemplaridade, pela repetição, pelo embate, e nós ainda não
temos uma cultura democrática”.

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