domingo, 7 de setembro de 2014

*Gaudêncio Torquato: Aristocracia à brasileira?

- O Estado de S. Paulo

Governar com os melhores quadros. Na floresta política dominada pelas árvores dos ismos - patrimonialismo, mandonismo, caciquismo, nepotismo, grupismo, fisiologismo - e devastada pelo fogo da corrupção que consome parcela das nossas riquezas, a ideia de convocar uma casta de notáveis para o desafiante empreendimento de governar o País até parece medida simpática. Poucos haverão de levantar a voz contra tão eloquente demonstração de civismo. Pressupõe-se que os "melhores" a serem chamados para as tarefas governativas integrarão uma plêiade de sábios, cultores da moral e da ética, experientes, espelhos de uma vida regrada de bons exemplos. Onde estariam esses luminares? Em partidos políticos, nas organizações sociais, no universo produtivo, enfim, nos mais diferentes ambientes da vida nacional. Esse é um compromisso de Marina Silva, caso seja vitoriosa no pleito de outubro.

Seria viável reunir um núcleo de dirigentes com essa diferenciada qualificação sem afetar as instituições nacionais e manter o equilíbrio do triângulo do poder, que, convenhamos, tem sido submetido nos últimos tempos a tantas tensões? Uma reflexão se faz necessária. Primeiro, vale reconhecer que não se pode acusá-la de fazer promessa eleitoreira, com interesse em tirar proveito da tese que a insere numa posição apartidária independente, sob a aplaudida intenção de procurar os melhores e tomar distância dos piores. Ao recorrer à ideia com frequência, reforça a impressão de sinceridade. A ex-seringueira acriana chega a denominar perfis, jogando uns no fogo do inferno (os identificados com a velha política) e glorificando outros com hosanas celestiais (os aparentados com a nova política).

Um "governo dos melhores", como se sabe, constitui uma das três formas clássicas de governar, sendo a primeira, a aristocracia, a que confere o poder às mãos dos áristoi, os melhores; as outras formas são a monarquia (monos, único, e arché, comando) e a democracia (kratos e demos, poder do povo). Esses tipos puros conduzem, na visão do filósofo Políbio, que se inspirou na República, de Platão, e na Política, de Aristóteles, a três tipos corrompidos - tirania, oligarquia e demagogia -, sistemas que têm povoado a História ao longo dos tempos. No caso brasileiro, não é novidade a pletora de oligarcas que fincam pé nos vãos da República desde sua origem.

Ao se comprometer a governar com os melhores, Marina mostra a intenção de resgatar as virtudes da sabedoria, da integridade e do conhecimento, inerentes ao original termo aristocracia na República ideal desenhada por Platão. Ora, pinçar quadros perfeitos, sábios, possuidores da verdade, íntegros, dentro de uma cultura política permeada por mazelas históricas parece missão impossível. Afinal, as (poucas) figuras denominadas, caso aceitem a missão oferecida por uma mandatária-mor com intenção de recriar uma "aristocracia brasileira" (não se entenda isso de maneira pejorativa), seriam aprovadas pelos partidos que as abrigam?

Imaginemos a engenharia administrativa. Marina pede as planilhas e escolhe: três representantes de um partido, quatro de outro, dois de um terceiro, e assim por diante. Seleciona "os melhores". As siglas aceitariam a convocação unilateral de alguns feita pelo Palácio do Planalto? Pouco provável. 

Mais uma observação: a tríade do poder, arquitetada pelo barão de Montesquieu, está em plena vigência por estas plagas. A estabilidade de um regime requer que a correlação das forças sociais possa expressar-se nas instituições políticas. Os escolhidos pelo povo - não necessariamente os "melhores quadros" - são também legítimos representantes da sociedade e qualquer arranjo institucional voltado para a governabilidade há de considerar sua condição. Noutros termos, as chamadas bancadas do "baixo clero" também representam (e como) o povo. Qualquer iniciativa no sentido de forçar uma facção política (os qualificados) a prevalecer sobre as demais será antidemocrática. Há de se considerar, para efeito de garantia de governabilidade, o princípio de correlação de forças. Sem tal premissa a estabilidade de governos vai para o brejo.

Já se disse que os 513 deputados federais retratam fielmente a cara esburacada do País. Escolher os bem-compostos, os fluentes, os preparados, enfim, os mais qualificados para compor as estruturas governativas até pode constituir disposição do Poder Executivo. Porém tal iniciativa, mesmo carregando bom senso, haverá de ganhar endosso de partidos e, caso os escolhidos integrem entidades de intermediação social, delas devem receber o passaporte para compor a moldura administrativa. Vale lembrar que a harmonia alcançada pelos governos resulta da aplicação de certas capacidades, dentre elas, a extrativa, que abriga a extração de recursos necessários ao seu funcionamento, aqui entendidos não apenas os meios econômicos e financeiros, mas os suportes e apoios políticos (não só dos melhores). Desvios nessa vertente produzem tensões.

Por último é oportuno levantar o véu que cobre nossa cultura política. Nela se verão manchas de toda ordem: costumes do passado; desvios gerados pelo declínio dos mecanismos da política (partidos sem doutrina), infidelidade partidária, invasão da coisa pública pelo interesse privado, distorções no sistema de votação (vota-se num candidato e se elege outro), distorção na representação (o voto em alguns Estados vale mais que em outros), cooptação imoral de eleitores, Parlamento refém do Executivo, presidencialismo de índole imperial, etc. Portanto, o compromisso central de um governante deve contemplar a reforma do sistema político e sua remodelação implicará necessariamente mudanças no modelo de administração pública, dentro da qual se implantará a meritocracia.

Eis o cerne da questão posta pela candidata Marina Silva quando invoca a pretensão de "governar com os melhores".

*Jornalista, professor titular da USP

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