- O Estado de S. Paulo
As greves que ora se sucedem nas universidades públicas paulistas recolocam um problema crucial, qual seja, os sentidos, as razões e as implicações dos movimentos paredistas no setor público, em particular para as instituições estatais e para a sociedade que o mantém.
Não é demais lembrar que a Constituição de 1988 - entre as muitas inovações no que se refere à expansão dos direitos de cidadania - estabeleceu no artigo 37, inciso VII, que o direito de greve dos servidores públicos "será exercido nos termos e limites definidos em lei complementar". Posteriormente, com a Emenda Constitucional n.º 19/1998, a exigência de regulamentação da greve no setor público passou de lei complementar para lei ordinária - essa alteração, se por um lado facilitou formalmente a regulamentação, por outro passou a exigir que isso fosse feito por meio de lei específica.
Entretanto, passados anos, o Legislativo não aprovou nenhuma lei estabelecendo normas específicas para o exercício do direito de greve na administração pública. Em face da incapacidade ou omissão do Congresso Nacional em regulamentar a matéria, o Supremo Tribunal Federal, em 2007, ao julgar mandados de injunção ajuizados por alguns sindicatos de servidores, decidiu aplicar à esfera do setor público, no que couber e com as devidas adaptações, a lei de greve do setor privado (Lei n.º 7.783/89). Essa determinação, obviamente, era temporária e visava a solucionar o problema enquanto permanecesse o hiato legislativo ou até que o Congresso aprovasse legislação específica.
Não obstante o caráter provisório de tal resolução da Corte Suprema, o fato é que, passados sete anos, o direito de greve dos servidores públicos continua sem regulamentação. E isso não se deve simplesmente à inércia parlamentar - tramitam no Congresso Nacional mais de uma dezena de projetos de lei (PLs) sobre essa matéria, entre eles o PL 4.497/01, proposto pela deputada Rita Camata, e o PL 710/11, pelo senador Aloysio Nunes Ferreira. A lacuna deve-se, em boa medida, ao fato de a regulamentação não interessar a muitas corporações e a alguns partidos; a esses importa a manutenção da imprecisão legal que permite toda sorte de conveniências e prerrogativas.
O problema da extensão da Lei n.º 7.783/89 ao setor público é que ela não responde às suas especificidades. A greve dos trabalhadores na empresa privada visa a compelir o empresariado a negociar a remuneração e/ou os benefícios de seus empregados; ao paralisar as atividades produtivas ou de prestação de serviços, a greve nesse setor faz cessar os lucros apropriados do sobretrabalho. Já no âmbito estatal, quem perde é a sociedade, que deixa de receber os serviços a que tem direito e para os quais contribuiu por meio de impostos. Além do mais, o estatuto e o contrato de trabalho de uns e de outros, servidores públicos e trabalhadores da iniciativa privada, são distintos e envolvem determinados direitos e deveres muito diferentes.
A inadequação da aplicação da lei geral de greve ao setor público é manifesta nas interpretações e nos usos que dela fazem juristas, sindicalistas e outros agentes interessados ou envolvidos. Muitos são os problemas e as implicações decorrentes de tal adaptação determinada pelo Supremo Tribunal Federal, como, por exemplo, os da não interrupção ou da paralisação do serviço público, da definição dos serviços essenciais, da eficácia e da aplicabilidade da lei, da isonomia e da legalidade, da mediação e do julgamento, da coerção e do arbítrio. O único consenso é o de que a greve constitui um direito legítimo e fundamental.
As peculiaridades do exercício do direito de greve no setor público tornam-se ainda mais evidentes quando se analisa o caso das universidades públicas, em especial no caso das estaduais paulistas, USP, Unicamp e Unesp, que são dotadas de autonomia didático-científica, administrativa e financeira - mantidas com 9,57% do ICMS arrecadado no Estado - e autogeridas: todos os cargos dirigentes são eletivos pela comunidade universitária.
Assim sendo, elas têm o poder de definir o orçamento, os salários, os benefícios, as carreiras, etc. Ou seja, têm relativa autonomia para estabelecer e prescrever normas e diretrizes.
Nessas condições, são de difícil compreensão por qualquer cidadão comum os propósitos ou os objetivos dos constantes, persistentes e prolongados movimentos paredistas nessas instituições de ensino superior. O direito de greve, historicamente um instrumento fundamental para a defesa dos interesses dos trabalhadores e recurso extremo em situações de impasse, foi banalizado, tornando-se mesmo trivial em algumas unidades universitárias.
Utilizando-se de meios e modos inapropriados, afrontosos e intimidatórios - piquetes, "trancaços", "cadeiraços", etc. -, as greves acabaram se convertendo em expedientes perversos de aviltamento da prestação de serviços públicos essenciais: ensino, pesquisa e extensão. Conduzidas por um sindicalismo de resultados agressivos e movidas por um corporativismo insaciável, têm como meta primordial e exclusiva a maximização de interesses e a potencialização de benefícios e/ou vantagens.
É desnecessário dizer que tais concepções e práticas têm acarretado a depreciação e/ou a degradação dessas universidades públicas, que estão, incontestavelmente, entre as principais instituições de ensino e pesquisa do País. Fato é que têm encontrado guarida na ausência de normas e procedimentos democráticos e no limbo jurídico determinado pela não regulamentação do direito de greve no setor público.
À vista disso, a greve no setor público, como direito constitucional legítimo e inalienável, para que seja efetivo, deve ser regulamentado com urgência a fim de que possa ser exercido de forma responsável, soberana e democrática, sem afrontas e arbitrariedades.
Professor titular do Departamento de sociologia da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp Araraquara
Vejamos alguns equívocos cometidos pelo ilustre professor Segatto em seu artigo.
ResponderExcluirEm primeiro lugar, quando diz que as três universidades gozam de autonomia, autogestão etc., isso não significa que os funcionários e professores devam aceitar índice de reajuste zero.
Em segundo lugar, autogestão não significa que toda a comunidade deva pagar pelos erros dos gestores. Para isso temos o Conselho Universitário que, diga-se de passagem, possui quase 70% ocupado pelos professores doutores.
Em terceiro lugar, nem todos do movimento grevista se identificam com "cadeiraços" e agem de forma intimidatória.
Em quarto lugar, não é possível que tais atos grevistas "acarretem a depreciação e/ou a degradação dessas universidades públicas"! o professor se esquece, por exemplo, da falar das Fundações que exploram a Universidade por dentro; dos cursos pagos de finais de semana promovidos pelos professores, se esquece de mencionar a terrível prática de cobrar taxas aos alunos, um dinheiro que circula "livremente", sem precisar prestar contas.
As greves prejudicam sim, mas talvez nelas haja um aprendizado, talvez, delas saia uma reflexão para as universidades públicas.
José Guilherme Kock
funcionário aposentado da Universidade Estadual Paulista -
Araraquara-SP