segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Denise Paiva - Fome de verdade II: Ruth Cardoso e a política social

Gramsci e o Brasil

No governo FHC, Ruth Cardoso introduziu na política social elementos sui generis, merecendo por isso ser lembrada e comemorada. Tal legado não pertence apenas ao PSDB, mas deve ser considerado como patrimônio da nação, até porque teve como concepção, essência e práxis a relação Estado e sociedade e a natureza suprapartidária.

Com a construção de um campo privilegiado, na esfera do poder central, de interlocução entre governo e sociedade civil, o programa Comunidade Solidária obteve forte consenso em torno de novos marcos referenciais capazes de produzir inovações no desenho e gestão das políticas sociais brasileiras.

Inovou tanto em políticas gestadas e gerenciadas pelo Estado como em políticas protagonizadas pela sociedade civil e pelo terceiro setor, articuladas e fortalecidas pelo Estado. Tal inovação, entre muitos fatores, deveu-se à capacidade de identificar e definir prioridades consoantes às demandas sociais emergentes.

A visão de mundo de Ruth Cardoso, frontalmente contrária ao assistencialismo “puro e simples” e ao conservadorismo, teve um papel decisivo na mudança do padrão cultural de conceber e executar a política social. Não foi por acaso que tal visão de mundo moderna e libertária influenciou muitas políticas públicas para além da esfera de ação legal do Conselho da Comunidade Solidária. Bons exemplos dessa influência podem ser identificados nas políticas de ação afirmativa da mulher, das crianças, dos jovens e dos afro-descendentes.

Programas em Saúde, Alimentação Escolar, Erradicação do Trabalho Infantil, Formação Profissional, Crédito Popular, Combate à Exploração Sexual, bem como diplomas legais, a exemplo do Marco Legal do Terceiro Setor e da Lei de Gratuidade do Registro Civil, são amostras da influência decisiva de Ruth Cardoso na viabilização e/ou fortalecimento da política social brasileira.

É impostergável resgatar o ineditismo, o processo de construção coletiva, os impactos, as marcas inovadoras que podem/devem ser incorporados ao legado da política social brasileira como contribuição da antropóloga Ruth Cardoso, durante oito anos presidente do Conselho da Comunidade Solidária.

A experiência do Conselho da Comunidade Solidária permitiu um novo olhar sobre o “conjunto das políticas públicas”, bem como o foco no território, na perspectiva de inter-setorialidade e fortalecimento do poder local.

A composição do Conselho, com a presença de pessoas com liberdade de expressão, sem enquadramento em critérios político-partidários e corporativos, contribuiu para alargar a visão e o compromisso com o todo e com a inovação.

Em 2001, Ruth Cardoso afirma: “Não desapareceu a velha sociedade civil mas tornou-se mais complexa a dinâmica de apresentação dos interesses coletivos [...]. A sociedade se fragmentou em espaços de ação política que não mais se confundem com as formas tradicionais de representação, mas que podem formar redes que conectam, solidariamente, os vários núcleos que as formam. E não se pense que esses núcleos têm perspectivas e objetivos não-conflitivos. A grande característica dessas sociedades é a diversidade de pontos de vista que acolhem, e é legítima a manifestações dessas posições” (Prefácio de Gestores sociais).

O novo cenário político-social dos anos 1990, ainda não suficientemente claro para a militância social, os intelectuais e o mundo acadêmico, ainda presos na visão estrita da relação capital/trabalho, já servia de contraponto para Ruth. Tal contraponto tinha um inspirador privilegiado, Manuel Castells, que insistia na noção de redes.

As redes usam avanços tecnológicos e novas linguagens que ampliam as possibilidades de interação entre seus integrantes. Novos comportamentos e novos valores enfraqueceram as estruturas verticais, criaram estruturas flexíveis e horizontais, criando relações não só entre iguais mas entre diferentes.

O novo olhar, sob as lentes de Ruth, revela que na ação pública ganham visibilidade os diversos sujeitos do fazer social: o Estado, a sociedade civil, o mercado, a comunidade e o próprio público alvo da política pública. Tais sujeitos solicitam uma relação democrática, horizontal, participativa, pró-ativa, sincera e generosa.

É desafio para nós, brasileiros, fazer o resgate do papel do governo FHC nas políticas sociais pós-Constituição de 1988. Necessário evidenciar o protagonismo e o coprotagonismo em relação a tais políticas. Cabe destaque à estratégia do Conselho da Comunidade Solidária no sentido de fazer acontecer e criar ambiência política no âmbito do Estado e da sociedade para a gestação e implementação de políticas sociais inovadoras e mais efetivas.

Tal resgate deve evidenciar a noção de processo na construção dessas políticas; e o conjunto dos processos antecede e ultrapassa o tempo de governo. Exemplo mais emblemático é o Programa de Transferência de Renda Bolsa Família. Teve sementes, adubação e base legal no governo Itamar (Lei Orgânica da Assistência Social – 1993); em termos de gestão, estrutura-se, efetiva-se e diversifica-se, como resposta a demandas setoriais específicas, no governo FHC; e ganha unificação e escala nos governos Lula/Dilma.

Outros programas que compõem o que poderíamos chamar de carros-chefe da politica social brasileira foram fortalecidos ou criados pelas mãos firmes e discretas de D. Ruth e sob seu criterioso olhar suprapartidário e crítico-analítico.

Cabe destaque ao Programa Saúde da Família. Criado no governo Itamar pelo Ministro Henrique Santillo, de Goiás, contou com a tenacidade e a competência de um assessor cedido pelo Unicef ao Ministério da Saúde, o médico Halim Girade, também goiano. A partir de 1994 seria implantado inicialmente em 14 municípios brasileiros. Tal iniciativa, inspirada na experiência cubana de médicos de família, já tinha expressão em alguns municípios brasileiros, como Niterói, no Rio de Janeiro. A proposta brasileira agrega a experiência dos “agentes comunitários de saúde”, criados por Alceny Guerra no governo Collor, com inspiração na experiência chinesa dos “médicos descalços”, e gera nova performance e metodologia para a atenção básica de saúde no Brasil.

Tão logo assume a presidência do Conselho da Comunidade Solidária, D. Ruth recebe as enfermeiras Fátima de Sousa e Heloisa Machado, que coordenavam o programa no Ministério da Saúde. Na mesma hora, D. Ruth convida o ministro Jatene para se darem as mãos no sentido de fortalecer e implantar o Saúde da Família, visando sua universalização em todo o Brasil.

Um dos primeiros municípios visitados na perspectiva de fortalecimento e integração das ações sociais entre o poder federal e o local foi o de Xapuri, no Acre, com apoio e presença de Marina Silva. A antropóloga Ruth tinha especial admiração por Chico Mendes e entendia que prestigiar o longínquo Acre era também uma forma de homenagear a jovem mulher, combativa e promissora senadora-seringueira.

O olhar de resgate não é compromisso estrito com o passado, não é mirada no retrovisor como fixação, mas busca de referência e orientação. É o olhar comprometido com o presente e o futuro, com o aperfeiçoamento, a universalização e a qualidade das políticas sociais. Políticas que devem ser consideradas conquistas e patrimônio da nação brasileira.
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Denise Paiva é assistente social e ex-Assessora de Assuntos Sociais da Presidência da República no Governo Itamar Franco e do Conselho da Comunidade Solidária.

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