domingo, 26 de outubro de 2014

Samuel Pessôa - Duas narrativas

• É a Constituição de 1988 que explica o crescimento dos gastos sociais, e não os governos petistas

- Folha de S. Paulo

Hoje é dia de votar. Segundo turno, dois candidatos. Cada campanha eleitoral construiu a sua narrativa.

A narrativa petista reconhece os ganhos da estabilização da economia promovido pelo governo FHC, mas assevera que houve forte descuido da área social. O gasto social não cresceu.

Adicionalmente, as políticas sociais, principalmente o programa Bolsa Família e a política de valorização do salário mínimo, promoveram ganhos de renda nas classes menos favorecidas, o que gerou uma virtuosa dinâmica de crescimento econômico.

O ganho de renda impulsionou o aumento da demanda por consumo, principalmente por produtos manufaturados. A indústria aumentou sua produção e, nesse processo, os custos foram decrescentes, pois as manufaturas geralmente trabalham com retornos crescentes de escala. Isto é, quando a quantidade produzida se eleva, o custo unitário se reduz.

Esse ciclo virtuoso foi potencializado pelas reformas microeconômicas do ministro Palocci, que aumentaram a eficiência do setor bancário na concessão de crédito.

A crise econômica promoveu forte desaceleração da economia mundial e gerou grande excesso de oferta na indústria internacional. A desaceleração do mundo, as dificuldades de nossa indústria manufatureira (fruto do excesso de oferta mundial) e choques cambiais promovidos pela política monetária muito expansionista dos países centrais quebraram a trajetória virtuosa na qual estávamos.

O governo respondeu com política econômica fortemente contracíclica --estímulo ao consumo e ao investimento, com os bancos públicos facilitando o crédito, e medidas de desoneração tributária-- e conseguiu impedir o mal pior, que seria o aumento do desemprego e a perda de renda. No entanto, como consequência da crise internacional, o crescimento diminuiu.

Seguindo com a narrativa petista, vivemos agora um momento de transição, em que a recuperação (mesmo que lenta) da economia internacional e um novo ciclo de investimentos em infraestrutura garantirão a retomada do crescimento em bases mais sólidas.

A narrativa tucana discorda de que a distinção entre os modelos seja o investimento na área social. A distinção encontra-se no papel do Estado na promoção do desenvolvimento econômico. O modelo tucano prefere um Estado regu- lador, o modelo petista um Estado interventor.

Na Constituinte de 1988, a sociedade tomou a decisão de construir um Estado de bem-estar social padrão europeu continental. É essa decisão que explica o crescimento do gasto social. Não os governos petistas. Aconteceria de qualquer forma.

Adicionalmente, o ganho de renda associado à política social é mais resultado do crescimento do que causa. Isto é, se aumento do gasto social produzisse crescimento apreciável da economia, como sugere a narrativa petista, o problema do subdesenvolvimento seria relativamente simples de ser resolvido. Bastava imprimir papel na Casa da Moeda e distribuir para as pessoas elegíveis aos diversos programas.

Infelizmente a vida insiste em ser mais complexa do que essa alternativa.

Para a narrativa tucana, os ganhos sociais são mais tributários da estabilização da economia e de toda a construção institucional promovida nos anos FHC --na qual as instituições fiscais como a Lei de Responsabilidade Fiscal e a negociação das dívidas dos Estados têm proeminência absoluta-- do que do ativismo das políticas sociais do atual governo.

A grande preocupação com um possível retrocesso nas políticas sociais é que, nos últimos quatro anos, houve leniência com a inflação e piora nas instituições fiscais. Já há deficit primário de aproximadamente 0,5% do PIB.

Adicionalmente o excesso de intervencionismo em todas as áreas da política econômica reduziu a capacidade de crescimento de nos- sa economia. A desaceleração no quadriênio de Dilma tem causas domésticas.

A política econômica dos últimos anos deu-se em bases não sustentáveis e, se nada for feito, corremos, sim, o risco de forte retrocesso nos ganhos sociais.

O eleitor escolhe a sua narrativa e, portanto, o seu voto.

Samuel Pessôa, formado em física e doutor em economia pela USP, é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV.

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