quinta-feira, 6 de novembro de 2014

César Felício - A herança do vendaval de junho

• Quando há disputa pela liderança, a moderação é vítima

- Valor Econômico

Para "venezuelanizar" o cenário político brasileiro, a visita do ministro chavista Elias Jaua na semana do segundo turno à escola de formação do MST foi o dado que faltava. O episódio em que a babá da família do ministro foi presa no aeroporto de Guarulhos por levar um revólver do chefe em uma valise gerou reações tanto na oposicionista Ação Democrática, em Caracas, quanto na bancada do PSDB na Câmara em Brasília. Ambas as siglas exigiram explicações de seus governos em nota oficial.

A ação antibolivariana dos tucanos, quatro dias depois do presidente venezuelano Nicolás Maduro festejar a reeleição da colega brasileira em uma cerimônia militar, não é isolada, como provou a vaia recebida ontem pelo petista Arlindo Chinaglia ao sair em defesa do convênio entre a Venezuela e o MST, durante um evento da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

O alerta ao perigo caribenho unifica o antipetismo e embute, do ponto de vista retórico, o ataque a aspectos autoritários da prática política de esquerda. Dá o tom radical a uma oposição que quer se mostrar pronta para o combate nas ruas e nas tribunas. Ou, nas palavras de Aécio Neves em seu discurso de ontem da tribuna do Senado, uma oposição "incansável, inquebrantável e intransigente".

Os vínculos entre o PT e seus apoiadores e o regime chavista são óbvios, como ficou claro com a trapalhada de Jaua. O mesmo ocorre entre as oposições em um e outro país. Ao passar pelo Brasil, em abril, a oposicionista Maria Corina Machado, deputada cassada pelos chavistas, teve tratamento de gala dado pela cúpula tucana. Corina não reconhece como legítima a reeleição de Maduro e junto com outras lideranças da oposição venezuelana participou de protestos marcados pela repressão que matou 41 pessoas, sendo 27 por arma de fogo. Denuncia o regime chavista como antidemocrático e controlado pela ditadura castrista.

A política venezuelana descambou para a briga de rua ainda nos anos 90, e o Brasil flerta com a prática desde o vendaval de junho. O caldo de cultura "black bloc" que emerge das redes sociais e das praças esteve presente em todo o processo eleitoral, ganhou um aditivo com a campanha de ataques sem freios do marketing da presidente e deixou as portas abertas para um protofascismo que incomoda os próprios dirigentes da oposição.

Nos últimos dias, Dilma parece empenhada em seguir o enredo clássico dos governantes que fazem um ajuste após as eleições, depois do mascaramento da realidade durante a campanha. A bola da radicalização foi deslocada para a cúpula do PT, que tenta se apropriar de maneira exclusiva e excludente da vitória, e para a luta pelo comando dentro do PSDB. Em ambientes onde há disputas pela liderança, o espaço da moderação diminui, porque não há força unitária capaz de bancar o custo de um movimento em direção ao centro. A moderação aliena apoios preciosos na demarcação de posições.

Aécio teve uma semana apoteótica em Brasília, com direito a aplausos dos colegas antes de discursar, nesta quarta. O tucano sempre poderá argumentar que está no jogo sucessório de 2018 porque fala com a autoridade de, com 51 milhões de votos no segundo turno, ser o tucano mais votado de todos os tempos. Mencionou esta circunstância três vezes em seu discurso. Mas sempre poderá ser lembrado que São Paulo, terra do rival Geraldo Alckmin, respondeu por 30% deste contingente e por 14 dos 54 deputados eleitos do partido. Se Aécio tivesse em Minas Gerais os mesmos 64% de votos válidos que obteve em São Paulo no segundo turno, ficaria com 50,1% da votação nacional. Essa conta já foi feita pelos tucanos paulistas. Também foi feita pelos mineiros, que passaram a apostar na agitação e propaganda.

"Recuperamos o caminho das ruas. Estamos fazendo manifestações de caráter democrático. Nosso pessoal não sai das redes sociais. Estamos enfoguetados", disse o deputado mineiro Marcus Pestana. O radicalismo das manifestações no último sábado, marcadas aqui e ali por desvarios de extremistas, tornou evidente que há um debate sendo feito dentro do PSDB. Em órbitas mais distantes do mineiro, as manifestações foram recebidas com frieza.

"O impacto do resultado está gerando sinais de inconformismo", disse o senador paranaense Alvaro Dias, rechaçando a comparação com a Venezuela. "Existe uma diferença abissal entre as realidades e os setores radicais não têm no Brasil a força que possuem lá. Temos instituições sólidas e o que se manifesta nas redes sociais não reflete o quadro nacional. Não são parâmetro", afirmou.

A referência à cizânia tucana foi feita ontem de modo elíptico pelo líder do PT no Senado, Humberto Costa, ao apartear Aécio. O petista lembrou que Alckmin foi enfático em condenar o extremismo. Em seguida, elogiou Aécio por também fazê-lo, ainda que sem veemência. O mineiro respondeu que o PSDB está comprometido com a democracia e que a vinculação da sigla com a extrema-direita é outra aleivosia lançada para desacreditar a oposição.

Na Venezuela, é a disputa pela liderança, dos dois lados da arena, que mantém o incêndio. A enorme votação obtida por Henrique Capriles em 2013 fez com que Corina e outros oposicionistas buscassem as ruas e colocassem em cheque a coalizão de 26 partidos que formam a Mesa da Unidade Democrática. Sem o carisma e o respeito que Hugo Chávez infundia, Maduro tornou-se a caricatura de seu inspirador para deter o avanço da ala militar do PSUV. Uma parte do ministério viaja pelo mundo acenando com a racionalidade econômica, outra confraterniza com o MST, enquanto o presidente conversa com passarinhos. É voz corrente que o Palácio de Miraflores é um campo de batalha.

A disputa também está dentro da campanha do coração valente. O último documento da Executiva Nacional do PT fala por si: "É urgente construir hegemonia na sociedade", afirma o texto. "Será necessário, em conjunto com partidos de esquerda, desencadear um amplo processo de mobilização (...) para transformar o Brasil, é preciso combinar ação institucional, mobilização social e revolução cultural". Seria oportuno saber o que o vice-presidente Michel Temer e o ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles pensam sobre o tema.

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