quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Marco Aurélio Nogueira - Popularização da classe política não faz Câmara ser mais progressista

– O Estado de S. Paulo

O mínimo que se poderia dizer do mais recente livro do professor Leôncio Martins Rodrigues (Topbooks, 2014) é que ele chega em ótima hora, pronto para esclarecer o debate público.

Isso se deve tanto à competência da análise, marca registrada do cientista político paulista, professor aposentado da USP e da Unicamp, quanto à relevância do tema.

Todos se recordam do alvoroço que se fez, logo após a apuração das urnas do primeiro turno das eleições, em torno da chegada ao Congresso Nacional de um grande número de deputados de perfil conservador. Não foram poucos os que constataram que o País estaria “indo para a direita”. A razão disso teria sido que os eleitores escolheram, para representá-los, parlamentares religiosos, militares, comunicadores, ruralistas e fisiológicos, estranhos aos principais partidos democráticos, mais fora do controle deles e mais propensos a seguir agendas conservadoras.

Empregando com habilidade e rigor alguns dos instrumentos típicos da boa pesquisa sociológica — a coleta e o manejo criterioso de dados, a proposição clara de uma teoria de fundo, a construção de séries históricas e comparações –, Leôncio derruba um dos mitos recorrentes no discurso político brasileiro, especialmente no de esquerda. Qual seja, o de que a política é o ambiente por excelência dos ricos e poderosos. Para ele, há dados abundantes para demonstrar que “o recrutamento para a profissão política está se fazendo cada vez mais nas camadas médias e, em menor medida, nas classes populares”. Como desdobramento, reduz-se o poder das classes proprietárias e das elites tradicionais, as chamadas “elites oligárquicas”.

A “popularização da classe política brasileira” responde a várias determinações. Decorre de forma direta da democratização da vida política, da mobilidade social e da modernização da sociedade. A vida tradicional tem menor poder de comando sobre as pessoas, vive-se de forma mais fragmentada e a massificação se tornou um fator importante na modelagem social. O campo político foi igualmente massificado: cresceu o tamanho do eleitorado e aumentou o número de organizações e entidades coletivas competindo por mais poder e benefícios. O resultado, escreve Leôncio, “é um volume extremamente elevado de atores políticos e de interesses sociais fragmentados em numerosas instituições, organizações e associações (sindicatos especialmente) que estabelecem vínculos com os partidos políticos e por eles elegem suas lideranças”. Desta forma, “aumenta o espaço público controlado ou influenciado por entes corporativos”.

Deu-se assim um duplo processo: a atividade política passou a ser um caminho de ascensão social ao mesmo tempo que a mudança social impulsionou a ida de trabalhadores e da classe média assalariada para a política. O caso mais emblemático é o de Lula. De origem humilde, uma família paupérrima de retirantes, Lula ascendeu socialmente ao se tornar metalúrgico e, mais tarde, dirigente social. Escreve Leôncio: “Como acontece com sindicalistas que ascendem pela via da atividade sindical, Lula já não era pobre ao entrar no mundo da política”. Há méritos próprios na trajetória, mas ela não seria compreensível sem as importantes mudanças que ocorreram na sociedade.

A pesquisa de Leôncio Martins Rodrigues concentra-se nos 513 deputados federais eleitos em 2010, para a 54ª Legislatura. Interessado em traçar o perfil socieconômico dos parlamentares, foi atrás de dados associados ao patrimônio declarado por eles, convencido de que a análise destes dados “é uma boa indicação do peso das elites saídas de diferentes classes e setores do sistema político e da sociedade brasileira”.

Não se trata, portanto, de uma conclusão que impute a maior ou menor riqueza nem a informações sigilosas da Receita Federal, nem a fatores de tipo ostentatório.

Para Leôncio, tanto faz o deputado “parecer” rico ou pobre, ostentar sinais socialmente tidos como associados à baixa ou alta renda. O importante é o que se tem de indicação objetiva, mesmo que ela possa estar contaminada por algum tipo de desvio subjetivista. Afinal, sempre se pode ocultar parte do patrimônio, ou sobrevalorizá-lo. Ao pesquisador interessa o que é declarado.

Com isto, a conclusão pode surpreender, mas dificilmente será contestada: o Congresso Nacional, nas duas últimas décadas, tornou-se um paraíso da classe média, refletindo a mudança principal a que se assistiu na sociedade e na política: a irrupção das massas na cena política institucionalizada, com o deslocamento das elites tradicionais e a afirmação progressiva de novas elites. O conduto principal deste movimento tem uma ponta dupla. De um lado, o processo de democratização que remonta aos anos 1980 e que se combinou com abertura de novos espaços políticos e com modernização e diferenciação socioeconômica. De outro lado, a projeção do PT e das forças por ele referenciadas, fato que possibilitou que a ocupação dos espaços abertos se fizesse com sangue novo, ou não tão velho.

A pesquisa de Leôncio ajuda a que se compreenda esse processo todo. Mostra que “o recrutamento para a classe política começou a efetuar-se mais intensamente nas classes médias e em maior medida nas classes populares, no ‘povão’. Os segmentos mais beneficiados foram aqueles onde existem sindicatos fortes, especialmente no setor público: professores, bancários, funcionários públicos, empregados de empresas estatais etc.”. O recuo que, em contrapartida, pode ser observado na representação das classes altas e das velhas elites de proprietários rurais indica o quanto se teve de mudança, ainda que não possa ser tomado como prova de perda total de poder. Muito ao contrário.

A Câmara dos deputados, apesar do aumento dos deputados vindos “de baixo”, está longe de ser uma “casa popular”. A mudança do perfil de seus integrantes demonstra, porém, que nela não predominam os milionários ou os membros das “elites econômicas”. Trata-se de uma instituição cortada pela desigualdade e pela heterogeneidade social. Os muito ricos (patrimônio superior a 4 milhões de reais) são cerca de 8%, os multimilionários (mais de 10 milhões de reais) não passam de 3% e 60% dos parlamentares declararam patrimônio inferior a 1 milhão de reais. “Pelos dados das declarações patrimoniais, a maioria dos deputados se enquadraria num dos segmentos intermediários da sociedade, sendo os ricos e os pobres uma minoria oscilando em torno de 10%”.

Donde a conclusão mais importante: “Essa distribuição dos valores, em princípio, trabalha a favor de orientações políticas moderadas de negociação e transações”.

O livro de Leôncio contribui, assim, para que se perceba que uma mudança na composição social da representação, ainda que em tese beneficie os partidos mais à esquerda e desloque as oligarquias tradicionais, não indica que a Câmara será sempre mais progressista. Os próprios partidos de esquerda nunca ultrapassaram a conquista de um terço das cadeiras da Casa. Há muito mais coisas em jogo: a qualidade e a transparência programática dos partidos, sua capacidade de se adaptarem às mudanças e à flutuação ideológica dos eleitores pesam tanto quanto os fatores institucionais.

Marco Aurélio Nogueira, professor titular de Teoria Política da Unesp

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