domingo, 2 de novembro de 2014

O mito da nação partida ao meio

• Com toda a tragédia, todas as reviravoltas e toda a paixão, a disputa de 2014 está sendo vista como marco na cisão nacional, mas é o contrário: num ritmo sólido e lento, próprio de países estáveis, o eleitor está-se afastando do PT, eleição após eleição

João Paulo Martins e André Petry – Veja

Uns poucos meses antes do pleito presidencial, qualquer estudioso da política diria que o PT estava irremediavelmente perdido. Nas democracias, os fatores que ditam uma eleição, ensinam os analistas, são três: estado e percepção da economia, popularidade do governo e tempo de permanência do partido no poder — quanto mais tempo, pior. A economia brasileira entrava em recessão técnica e o pessimismo crescia, a popularidade de Dilma Rousseff estava perto do fundo do poço e o PT completava doze anos no Palácio do Planalto, o mais longo período da nossa história democrática. Os três indicadores, portanto, favoreciam o PSDB.

Diz o cientista político Antonio Lavareda: "Os tucanos sabem, interna e reservadamente, que perderam pela campanha que fizeram, pelos erros estratégicos que cometeram". O PT explorou impiedosamente tudo que lhe caiu no colo. Aproveitou a adjetivação "leviana" do tucano à presidente para retratá-lo como um candidato desrespeitoso com as mulheres. Utilizou a derrota do PSDB para o governo de Minas Gerais para embalar o bordão que se revelou eficaz: "Quem conhece Aécio não vota em Aécio". Quando tudo conspirava para sua derrota, o PT virou o jogo. Por pouco, mas virou.

A boa notícia para o PSDB é que o partido encerra a campanha em ascensão. Seu desempenho cresce a cada pleito, enquanto o do PT cai. De 2002 para cá, o eleitorado petista encolheu 10 pontos porcentuais, de 61% para 51%, num ritmo gradual mas sem recuos. Na primeira vitória presidencial, Lula perdeu só em Alagoas. Em 2006, perdeu nos três estados do Sul, nos dois Mato Grosso, em Roraima e em São Paulo. Quatro anos depois, Dilma acrescentou Acre, Rondônia, Espírito Santo e Goiás à lista de perdas. Agora, foi-se o Distrito Federal.

Nos cinco maiores colégios eleitorais do país, o cenário é parecido. Em dois, São Paulo e Rio Grande do Sul, os tucanos estão à frente dos petistas. Entre os paulistas, a vantagem é de 29 pontos. Entre os gaúchos, são 7. Nos outros três, o PT ainda tem mais votos, mas vem caindo em todos. Em Minas Gerais, a dianteira petista reduziu-se para 5 pontos. No Rio de Janeiro, para 10. Na Bahia, a liderança é de estratosféricos 40 pontos, mas mesmo lá ela vem se estreitando. Mantida a tendência que se verifica desde 2002, o PT não faz o sucessor na próxima eleição. Talvez por isso, nem bem estava terminada a apuração, Lula já se insinuava como candidato em 2018, quando terá 73 anos.

A dança dos números, eleição após eleição, já confronta, por si só, a tese segundo a qual o Brasil saiu das urnas rachado ao meio — tese motivada, em parte, pelo resultado nacional tão apertado: 51,64% para Dilma e 48,36% para Aécio. Na página seguinte, o leitor verá dois mapas. O menor mostra o Brasil vermelho ao norte e azul ao sul, produzindo a ilusão cromática de um país partido ao meio. É um país inventado. O mapa maior, porém, retrata a realidade, mais complexa e nuançada: o eleitorado não se divide pela geografia, com sulistas de um lado e nordestinos de outro, mas pela situação socioeconômica. Por isso, Aécio, embora bem votado nas áreas ricas e avançadas, também tem votos no Piauí, ainda que poucos. Pela mesma razão, Dilma. candidata dos rincões pobres, tem votos em Santa Catarina, poucos, mas tem. Resume Lavareda: "Não se trata de um apreço setentrional ao PT ou uma aversão meridional ao PT".

Tome-se o caso da região mais populosa e rica do Brasil, o Sudeste. Nos quatro estados da região, Aécio conseguiu 25,5 milhões de votos, mas Dilma recolheu 19,9 milhões. Obviamente, foi um desempenho decisivo para a sua vitória. Na região Sul, em que Aécio venceu com 9,7 milhões de votos, 6,8 milhões de eleitores optaram por Dilma. O equívoco divisionista é traduzir a vitória de um candidato em determinada região como se toda a região tivesse votado no vitorioso. (Aos que andaram pregando a estupidez de dividir o país, faltou consultar os 26,6 milhões de eleitores do Sul e do Sudeste que votaram no PT. Ou os 8 milhões de nordestinos que escolheram o candidato do PSDB.)

A interpretação de que o Nordeste, populoso e pobre, é o responsável pela reeleição de Dilma faz parte das mitologias enganosas da política. Dilma ganhou porque teve um desempenho sólido — nunca inferior a 40% — em todas as regiões do país. O Nordeste lhe deu a votação mais vistosa, mas, sem o apoio razoavelmente expressivo dos eleitores do Sul e do Sudeste, Dilma não apenas perderia a eleição. Levaria uma lavada.

Os 20 milhões de votos que Dilma colheu nos nove estados do Nordeste reforçaram a ideia de que o Bolsa Família, o maior programa social do país, é a melhor explicação para o sucesso eleitoral do PT na região. Sem dúvida, o programa tem peso extraordinário na definição do voto dos mais pobres, tanto que há uma correlação visível: onde tem muito Bolsa Família, tem muito voto no PT. Mas sua influência é relativa. Em pesquisa feita entre os dias 25 e 29 de agosto passado, o cientista político Alberto Carlos Almeida perguntou aos eleitores se haviam melhorado de vida e, em caso positivo, o motivo da melhora. O nível de emprego ganhou, com 50% das menções. Só 24% apontaram as políticas sociais e 18%, o aumento do salário mínimo.

É fácil supor que o PT, tomando o lugar do poder privado, tenha virado no Nordeste o coronel do século XXI e o Bolsa Família seja seu voto de cabresto — e, parodiando Victor Nunes Leal, autor do clássico Coronelismo, Enxada e Voto, teríamos agora o "Petismo, Bolsa Família e Voto". A melhor explicação para o desempenho petista no Nordeste, no entanto, está na confluência de um conjunto de políticas sociais — do financiamento do estudo universitário às habitações populares — com um trabalho exemplar de marketing. Em poucos anos, o PT, que antes se identificava com a massa de trabalhadores organizados e as classes médias urbanas, perdeu contato com sua base original e, mais que depressa, propagandeou-se como defensor dos pobres, reencarnando um brizolismo extemporâneo. "O PT conseguiu criar para si a imagem do partido dos pobres", diz o cientista político Jairo Nicolau, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. "Na hora de apertar o botão da urna eletrônica, isso pesa para o eleitor da Baixada Fluminense, do Vale do Jequitinhonha." No Nordeste, além da imagem projetada pelo PT, entra em jogo o próprio desempenho da região, que vem sistematicamente crescendo mais do que a média brasileira.

Nos cinco primeiros meses deste ano, a economia nacional encolheu 0,6%, enquanto a economia nordestina cresceu 4%, segundo dados do Banco Central. Os investimentos federais na região são maciços. Em Pernambuco, no mandato de Dilma, são 8 bilhões de reais só para a habitação. No Ceará, perto de 9 bilhões de reais. São 4,5 bilhões no Rio Grande do Norte. De 2000 para cá, com a construção de sete universidades na região, o número de nordestinos no ensino superior saltou de 400 000 para 1,4 milhão. O progresso na região, aliado às políticas sociais, mostra que os nordestinos têm motivos sólidos para querer a reeleição de Dilma.

O Santo Graal da ciência política é descobrir as razões do voto. As teses sociológicas e psicológicas, nascidas entre os anos 50 e 70, acabaram cedendo espaço à chamada "escolha racional", corrente majoritária hoje. Por essa interpretação, o eleitor sempre usa a racionalidade na hora do voto, ainda que nem tenha plena clareza sobre isso. Ele calcula sua situação, compara com as opções e vota — com egoísmo, quando pensa só nele, ou com altruísmo, quando pensa nos outros. Parece simples, mas é um processo quase indecifrável de tão complexo. Será mesmo que o voto é racional? Será que o eleitor tem informação suficiente para decidir racionalmente? Mesmo sem essas respostas, é notável constatar que, geralmente, o eleitor tem ótimas razões para votar como vota.

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