domingo, 21 de dezembro de 2014

Fernando Gabeira - 'Antes de morir me quiero'

• Com o reatamento das relações entre os EUA e Cuba, cumpre-se não só um desejo de cubanos, americanos, do Papa, mas também da maioria dos brasileiros

- O Globo / Segundo Caderno

Com o reatamento das relações entre os EUA e Cuba, cumpre-se não só um desejo de cubanos, americanos, do Papa, mas também da maioria dos brasileiros. Nossa política externa sempre foi contra o bloqueio econômico. No governos Lula-Dilma, é verdade, esse desejo foi mais intenso e profundo, culminando com a construção do Porto de Mariel, que deverá ter um papel estratégico.

Alguns cubanos e parlamentares americanos não gostaram da decisão.

Interpretaram como uma vitória do castrismo. No momento, a reaproximação é um jogo em que todos ganham, sobretudo o povo cubano, que precisa, urgentemente, dessa abertura para o mundo.

Algumas vozes do governo brasileiro sonham com uma China no Caribe. Um regime autoritário mas com grande atividade econômica. Começam aí nossas divergências.

O acordo entre Obama e Raúl Castro não prevê mudanças políticas na ilha. Mas concentra suas esperanças na difusão da internet, um instrumento que tem um enorme potencial, sobretudo num povo alfabetizado como o cubano.

A posição sobre Cuba no Brasil tem uma linha divisória clara: apoiar ou condenar o regime autoritário. Acompanho o drama dos intelectuais dissidentes no país, li sobre como uma geração de poetas e escritores foi dizimada por uma burocracia truculenta e impiedosa. Cheguei a criar um comitê virtual para defender a libertação de Raúl Rivero, um poeta e escritor, que acabou deixando a prisão e rumando para a Espanha.

Gostaria de visitar Cuba. Assim como gostaria de visitar os Estados Unidos e a China. Os americanos me bloqueiam por um sequestro no século passado. Os diplomatas chineses sabem que sou simpático ao Tibet e ao Dalai Lama.

Antes de morrer, gostaria de rever as paisagens cubanas, onde vivi um ano e meio de minha vida. Gostaria de levar a câmera e buscar os vestígios de uma geração de artistas talentosos esmagados pelo regime.

Não será ainda numa China do Caribe que esse sonho poderá se realizar. Aliás, os burocratas petistas não sonham apenas em reproduzir as características da China em Cuba. Se pudessem, também instalariam aqui um regime autoritário com crescimento econômico. É o seu sonho de consumo.

No Brasil, o buraco é mais embaixo, creio eu. Um fator essencial para isso é a liberdade de expressão. Considerando nossa tradição diplomática contra o bloqueio, a construção do Porto de Mariel é inteligível. No entanto, as verbas foram mantidas em sigilo.

A transparência é outro fator vital como a liberdade de expressão. Alberto Youssef, o doleiro, foi a Cuba em missão oficial. Nas suas anotações apreendidas pela PF, há uma cifra, 3,2, ao lado da palavra Porto de Mariel.

São apenas detalhes de pé de página, num grande acontecimento histórico — diriam os defensores do governo. Mas são esses detalhes, liberdade de expressão e transparência, que nos dividem. Assim como nos divide a tese de que a corrupção é legítima, diante do crescimento da renda.

A mais duradoura das divisões ainda se refere à natureza do regime cubano. Cantada em prosa e verso pelos intelectuais brasileiros, a revolução cubana maravilhou poetas e escritores por aqui, enquanto lá aniquilava poetas e escritores.

Nunca houve em nosso país um protesto articulado de intelectuais contra a repressão em Cuba. A ilha é um paraíso congelado na fantasia da esquerda. Lula chegou a comparar os prisioneiros políticos em Cuba aos bandidos do PCC presos em São Paulo.

Cada um celebra à sua maneira uma vitória da tolerância e da coexistência pacífica. Os que sonham com uma China no Caribe sonham também com um regime capitalista dominado por uma burocracia comunista.

Antes de morrer, gostaria de ver uma Cuba livre, passear pelo Malecón acreditando que, pelo menos, tanto sofrimento, tanta tortura e tanta perseguição tiveram um sentido histórico.

Claro que um sonho também importante era ver a esquerda brasileira reconhecer o descaminho do regime castrista e centrar sua energia na solidariedade com o povo cubano.

Sei que estou pedindo muito. A vida não é tão longa assim. Mas o processo inaugurado nesta semana é, no fundo, uma esperança para todos, não só para os que desejam um próspero regime autoritário.

A blogueira Yoani Sánchez considerou o reatamento uma vitória do castrismo. A própria Yoani, que obteve tanta repercussão com um fio de internet na ilha, poderá alcançar os cubanos com mais facilidade, conectar-se melhor com o mundo.

Ao ver o adversário festejando, temos uma certa dificuldade em festejar também. É difícil reconhecer o tema em que todos ganham. O fim do bloqueio a Cuba é um deles.

Uma vez no exílio, para justificar a luta democrática, escrevi que o melhor na contradição não é a supressão de um dos polos. O mais fascinante é mudar o quadro em que ela se move. E não é que se moveu?

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