segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Golpismo fiscal

• À revelia da lei, governo faz manobra para oficializar a irresponsabilidade com o gasto público ao mesmo tempo que, orientado por uma lógica política, anistia municípios comandados em sua maioria por petistas ou partidos da base aliada

Josie Jerônimo – IstoÉ

Não gastar mais do que se arrecada. Esse princípio básico de administração começou a ser levado a sério pelos gestores brasileiros no ano de 2000, com a criação da Lei de Responsabilidade Fiscal, uma das grandes conquistas do País após a redemocratização ao lado da eleição direta e da estabilização da moeda. Mas a gastança não planejada do governo federal ameaça acabar com o mais importante pilar da gestão pública. Imersa em uma ciranda de custos crescentes e receitas estagnadas, a presidente Dilma Rousseff seria enquadrada pela Lei de Responsabilidade Fiscal no próximo ano se não usasse sua máquina política e fraudasse a própria norma que rege os gastos públicos, para obrigar o Congresso a redefinir os parâmetros do exercício fiscal de 2014. Com a alteração da meta de superávit, prevista para ser votada na terça-feira 2, o governo pretende regulamentar – ou seja, tenta dar ares de legalidade – a prática corrente de maquiar as contas públicas para elaborar um falso cenário de equilíbrio financeiro. Trata-se de um golpe.

A necessidade de promover uma ginástica fiscal para que a conta feche, porém, parece não ter servido de lição. Mesmo faltando dinheiro para honrar os compromissos do governo, na quarta-feira 26 a presidente sancionou a lei que muda o índice de correção das dívidas de Estados e municípios com a União e permitiu o cálculo retroativo de débitos contraídos antes de janeiro de 2013. Para a benesse, o governo abriu mão de R$ 59 bilhões em receitas de juros das dívidas que chegam à casa dos R$ 500 bilhões.

A mudança nos contratos das dívidas é um pleito antigo dos prefeitos e governadores. Quando assumiu, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi pressionado a fazer a alteração. Mesmo em um momento econômico melhor, Lula não cedeu aos pedidos. Em 2005, o então prefeito José Serra (PSDB) foi ao Congresso expor a situação financeira do município, pleiteou alterações na lei, mas voltou de mãos vazias e permaneceu com a dívida bilionária a pagar. Agora, o município de São Paulo, comandado por Fernando Haddad (PT), é o maior beneficiado pela mudança, que ganhou ares de anistia. A cidade terá um abatimento de R$ 26 bilhões no total do saldo de sua dívida graças ao cálculo retroativo. Com a margem, São Paulo poderá voltar a solicitar empréstimos a bancos públicos para tocar grandes obras. Numa clara decisão política dirigida a um partido político à custa do estouro no Orçamento, a alteração legal dará a Haddad a possibilidade de movimentar mais R$ 3 bilhões em investimentos durante sua gestão. O impopular prefeito de São Paulo é candidato à reeleição em 2016 numa cidade em que a vitória é crucial para os planos de poder petista.

Na esfera estadual, o principal beneficiado será Minas Gerais, segundo maior colégio eleitoral do País e também um Estado estratégico para o PT. O petista Fernando Pimentel assumirá o governo com uma boa notícia. Ele iniciará a administração com uma dívida menor do que a de seu antecessor, Antonio Anastasia (PSDB). O alívio nas contas públicas proporcionará margem adicional de pelo menos R$ 2,4 bilhões para Pimentel ampliar os gastos do governo. Além da administração estadual, 53 cidades mineiras serão contempladas com a repactuação. O governador de Santa Catarina, Raimundo Colombo (PSD) – que migrou da oposição para apoiar o governo –, será o terceiro maior beneficiado pela redução das taxas de correção da dívida do Estado, depois de Minas Gerais e São Paulo. Entre as nove capitais que mais ganharão com a medida, apenas Salvador (BA) e Vitória (ES) são comandadas por legendas da oposição. As administrações das cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Natal, João Pessoa e Cuiabá mantêm fortes ligações com o governo.

O viés político da anistia aos prefeitos e governadores não passou despercebido pela oposição, que deflagrou uma guerra contra o aval do Legislativo à transgressão fiscal do governo. "A mudança no índice de correção da dívida foi movida, em um primeiro momento, para ajudar o Fernando Haddad em São Paulo. Depois veio o pleito do governador eleito de Alagoas, Renan Filho, o que naturalmente acelerou as coisas. A situação da União é grave e, em vez de apertar, o governo alivia para prefeitos e governadores que querem gastar mais", critica o líder do PSDB na Câmara, Antonio Imbassahy (BA).

A fragilidade da situação financeira e o hábito petista de gastar mais do que pode produziram, nesta semana, mais uma página lamentável no histórico do relacionamento do governo Dilma Rousseff com o Parlamento. O presidente do Congresso, Renan Calheiros (PMDB-AL), apressou as bancadas para realizar sessão de votação de vetos presidenciais e deixar a pauta limpa para votar o projeto do senador Romero Jucá (PMDB-RR), que flexibiliza a meta de superávit de 2014. O governo tinha pressa em votar a trapaça contra a lei de responsabilidade fiscal na quarta-feira 26, pois precisava da pendência resolvida quando anunciasse os novos ministros que vão compor a equipe econômica, o que aconteceu na quinta-feira 27. Não deu certo. Dilma foi traída por sua própria base. Os parlamentares, impedidos de se opor publicamente ao projeto de conceder anuência ao erro administrativo do governo, não apareceram no Congresso para votar. Sem quórum, a sessão foi adiada para terça-feira 2.

Os governistas que assumiram a missão de salvar a presidente Dilma do incômodo de iniciar o segundo mandato respondendo a crime de responsabilidade levaram duros ataques da oposição. A reação mais feroz veio do líder do DEM na Câmara, Mendonça Filho (PE), contra Renan Calheiros. Exasperado, o deputado acusou o presidente do Senado de ser fiador da fraude governista. "Vossa Excelência é uma vergonha para essa Casa", afirmou na sessão do Congresso da quarta-feira 26, interrompida por uma falta de quórum, graças a uma calculada ausência da bancada do PMDB, que usa o desespero do governo para negociar cargos na Esplanada.

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