sábado, 6 de dezembro de 2014

João Cabral de Melo Neto - Auto do frade

(
trecho de Frei Caneca)

Acordo fora de mim
como há tempo não fazia.
Acordo claro, de todo,
acordo com toda a vida,
com todos cinco sentidos
e sobretudo com a vista
que dentro dessa prisão
para mim não existia.
Acordo fora de mim:
como fora nada eu via,
ficava dentro de mim
como vida apodrecida.
Acordar não é ter saída.
Acordar é reacordar-se
ao que em nosso redor gira.
Mesmo quando alguém acorda
para um fiapo de vida,
como o que tanto aparato
que me cerca me anuncia:
esse bosque de espingardas
mudas, mas logo assassinas,
sempre à espera dessa voz
que autorize o que é sua sina,
esse padres que as invejam
por serem mais efetivas
que os sermões que passam largo
dos infernos que anunciam.
Essas coisas ao redor
sim me acordam para a vida,
embora somente um fio
me reste de vida e dia.
Essas coisas me situam
e também me dão saída;
ao vê-las me vejo nelas,
me completam, convividas.
Não é o inerte acordar
na cela negra e vazia:
lá não podia dizer
quando velava ou dormia.

João Cabral de Melo Neto (Recife, 9 de janeiro de 1920 - Rio de Janeiro, 9 de outubro de 1999) - Além de poeta, foi um diplomata brasileiro. Classificado como poeta da geração 45, terceira geração do modernismo, foi agraciado com diversos prêmios ao longo de sua carreira de escritor. Foi membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Pernambucana de Letras.

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