domingo, 21 de dezembro de 2014

Luiz Sérgio Henriques* - O Natal e as circunstâncias

• É provável que esteja à vista uma mudança impulsionada pela legalidade democrática

- O Estado de S. Paulo

O gênio machadiano, entre outras imagens que se fixaram na alma coletiva, legou-nos a dolorosa noção da impossibilidade de atar as pontas da existência. Mesmo o Natal, com seu intenso conteúdo de comunhão entre religiosos e não religiosos, seria incapaz de restituir, no conhecido soneto, as "sensações da idade antiga": é que haviam mudado irreversivelmente tanto a circunstância natalina quanto o sujeito poético já maduro que tenta revivê-la.

Em plano mais prosaico, mas decisivo nesta hora de nossa História, é provável que esteja à vista de todos a mudança dramática das circunstâncias, no fundo impulsionada pelo avanço, em meio a sustos e solavancos, da legalidade democrática instaurada com a Constituição de 1988 - para marcar a data central de "refundação" do Brasil.

A Carta de 88, e não a chegada ao poder de qualquer uma das partes políticas, é o marco zero que nos dá régua e compasso, com a exigência rigorosa de comportamento democrático-republicano, com o conjunto de normas que requerem a mudança dos atores, de sua presença na arena pública, de suas relações recíprocas.

As circunstâncias tornaram-se mais dramáticas em momento inesperado, quando, pelo voto, se renovaram os mandatos da presidente, de governadores e parlamentares. De fato, nada lembra o período de graça que se concede a governantes novos - ou reconfirmados -, os tais "cem dias" nos quais o mandatário se mexe com desenvoltura, em meio a relativa distensão do ambiente. Normalmente, a própria oposição ensarilha as armas ou busca reposicionar-se com cautela, reconhecendo à parte vitoriosa a iniciativa do jogo.

Esse período de esperança, porém, está visivelmente abalado: a ele se substituem o temor das crises que se somam e o pressentimento da incapacidade, especialmente por parte do governo federal, de enfrentá-las em sentido positivo. A economia parece exaurida, depois de surfar - irresponsavelmente - no ciclo de prosperidade made in China da primeira década do século. Ainda exibe joias de valor, como o mercado de trabalho aquecido e o aumento do salário mínimo, mas o consenso é que tais joias logo perderão o viço, ausente a variável decisiva do investimento público e privado.

A política, como sempre, é o terreno minado por excelência. Acumulam-se aqui as consequências menos positivas do modo de ser do sujeito central da vida brasileira - o então poderoso partido de esquerda cuja vitória, em 2002, marcou o completamento da democracia previsto na Constituição e cuja atuação, às vésperas do quarto mandato presidencial seguido, já contabiliza o arriscado resultado a que se pode chegar quando se opera, em condições "ocidentais", com categorias de repertório antigo, essencialmente inadequado para promover as mudanças que a retórica agressiva afirma perseguir.

A verdade é que, desde 2003, temos tido sucessivos exemplos da predominância de tal repertório envelhecido. Um fato paradoxal, de vez que, na economia, pelo menos o primeiro período presidencial do ciclo petista fez concessões à ortodoxia, cuidando de manter essencialmente intocadas as metas de superávit e o controle da inflação nos termos propostos pelo governo anterior, ainda que o bombardeio retórico não tenha abandonado, por oportunismo, o refrão da "herança maldita" e da contraposição frontal com um inimigo cuidadosamente construído.

Ainda agora, na situação de dificuldade das contas públicas e do limite alcançado pelo experimento "keynesiano", a presidente da República move-se no sentido de restaurar, em linhas gerais, o arranjo do primeiro governo Lula, passando por cima de apregoado apego ao nacional-desenvolvimentismo. Deixando de lado qualquer avaliação desse movimento, o fato é que nada disso se repete na política. Seja por atavismo das lutas sindicais, terreno propício à linguagem de um corporativismo radicalizado, mas pré-político, seja por influência distante, mas renitente, da raiz de extrema esquerda, o petismo opera, por princípio e sistema, com a lógica da demonização do adversário, nisso muito próximo de seus meios-irmãos do "populismo" latino-americano.

A recente campanha eleitoral reavivou todas as feridas, conduzida, como foi, pela ideia de "desconstrução", sofisticado conceito pós-moderno que se degradou à condição de desabrido marketing negativo contra os "inimigos do povo". E, na sequência da campanha, a crise que ameaça abater-se com força sobre todo o sistema político em decorrência da ação de instituições autônomas da República - e com consequências que não sabemos prever - ainda não encontrou resposta minimamente adequada. Ao contrário, nas palavras de um de nossos últimos "grandes velhos", o bravo Pedro Simon, "Dilma e o PT declararam guerra à oposição. Ela, que se diz coração valente, não teve peito de chamar, nem por educação, Aécio ou Marina para uma tentativa de entendimento".

Mais do que promotora da conciliação na frente econômica, é evidente que a presidente Dilma deve reinventar-se, nos termos do discurso de vitória, como ator livre de sombras e amarras, afastando-se da lógica de "partilha" do governo e, muito particularmente, abrindo-se ao entendimento com os adversários em busca de consenso para uma reforma política sem aventuras, mas efetiva, e a defesa da estabilização possível do sistema partidário, sob risco de implosão.

O velho Machado duvidava de um reencontro pleno do sujeito consigo mesmo através da intrincada máquina da memória. O bruxo do Cosme Velho escrevia em profundo plano existencial. Em vez disso, a política permite que o sujeito - desde que minimamente afeito à convivência civilizada - se ponha à altura das circunstâncias e ache bom ancoradouro, apesar de condições adversas.
Mero desejo, talvez incendiado pela época propícia?

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das 'obras' de Gramsci no Brasil.

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