sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Página virada – Folha de S. Paulo / Editorial

• Comissão da Verdade conclui trabalho; tempo de violência política precisa ser conhecido e debatido, mas foi a anistia que possibilitou superá-lo

O relatório da Comissão Nacional da Verdade não traz novidade de monta em relação a um período já esmiuçado na história recente, o da ditadura militar (1964-1985).

Numa decisão controvertida, tomada logo após sua instalação pelo governo federal, em maio de 2012, a CNV excluiu do exame as violações de direitos humanos por motivação política que não tenham sido causadas pelo Estado. O relatório silencia, assim, sobre os crimes das organizações armadas que combateram para substituir a ditadura militar por outra, de cunho comunista.

Argumentou-se, com razão, que tais delitos já haviam sido punidos pelo próprio regime militar. Prevaleceu, entre os comissários, o entendimento de que o alcance da tarefa limitava-se a inventariar as denúncias de abusos cometidos pelas autoridades à época.

Após uma fase de letargia errática, a CNV conseguiu encaminhar seu trabalho nesses termos, sobretudo depois que o advogado Pedro Dallari passou a coordená-la.

Sabe-se que as décadas de 60 e 70 foram um tempo de extrema polarização na América do Sul (e em outras partes do mundo). Facções de direita e de esquerda recorreram à violência, levando ao colapso do regime democrático em vários países, entre eles o Brasil.

Maior porção de culpa cabe aos militares, seja porque desencadearam uma repressão desproporcional e abusiva, seja porque o ônus moral, nas sociedades modernas, recai sobre os vitoriosos. A prática rotineira da tortura e do assassinato configura mancha abjeta na história desses regimes.

A anistia irrestrita, concedida pela ditadura brasileira nos seus estertores, em 1979, foi o passo decisivo para a superação pacífica dessa crônica nefanda. Foi incorporada pela emenda constitucional que convocou, em 1985 --já após o restabelecimento democrático--, o Congresso constituinte que produziu a Carta em vigor desde 1988. E foi reiterada pelo Supremo Tribunal Federal em 2010.

Por mais que seus efeitos possam ser repugnantes do ângulo humanitário, sobretudo para os atingidos pela violência ditatorial, a anistia irrestrita é um dos pilares sobre os quais se apoia a democracia brasileira. Foi sua aceitação pelo conjunto das forças políticas que rompeu o ciclo de retaliações iniciado em 64.

Não é sensato nem desejável que compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, determinando que a tortura é crime imprescritível, possam sobrepor-se à soberania jurídica nacional quando se trata das próprias fundações do Estado de Direito entre nós.

A anistia deve ser preservada. O passado precisa ser conhecido e debatido. Para superá-lo de vez, falta às Forças Armadas divulgar os documentos retidos e reconhecer os abusos praticados.

Nenhum comentário:

Postar um comentário