sábado, 10 de janeiro de 2015

"Não deixaremos de criticar religiões", diz sobrevivente do "Charlie Hebdo"

Isabelle Hanne - "Libération"

Os jornalistas que sobreviveram ao atentado voltaram ao trabalho na sexta-feira. Com os mortos e os feridos no pensamento, para levar um jornal às bancas na próxima quarta-feira.

A reunião de pauta do "Charlie Hebdo" durou mais de três horas ao todo. É que na manhã de sexta, além do trem, das pautas, dos prazos, foi preciso falar dos mortos, dos feridos, das homenagens, dos funerais. A sala da escotilha, onde o "Libé" [o jornal francês "Libération"] geralmente realiza sua reunião de pauta diária, foi ocupada dessa vez pelos profissionais sobreviventes do semanário satírico. Iluminada de um lado por uma grande janela redonda, a sala está ao mesmo tempo aquecida demais e aberta aos quatro ventos, para deixar escalar a fumaça dos cigarros.

Sobre a grande mesa redonda, computadores emprestados pelo grupo "Le Monde". Sentados em volta dela, Willem, Luz, Coco, Babouse, Sigolène Vinson, Antonio Fischetti, Zineb El Rhazoui, Laurent Léger Ao todo mais de 25 pessoas, com a aparência abatida e os olhos inchados. O núcleo central do "Charlie Hebdo", os colaboradores habituais e os ocasionais estão ali para preparar o próximo número do jornal. O semanário deve sair na próxima quarta e terá tiragem de 1 milhão de exemplares, ou seja, mais ou menos 20 vezes a tiragem habitual.

"Pude ver todo o mundo no hospital", começa dizendo Gérard Biard, o editor-chefe do "Charlie". "Riss está com o ombro direito ferido, mas o nervo não foi afetado. Ele está com muita dor. A primeira coisa que falou é que não tem certeza se vamos poder continuar a fazer o jornal."

Fabrice Nicolino, atingido várias vezes no atentado, "está melhor", se bem que "é evidente que está sofrendo muito mesmo".

Patrick Pelloux, médico de urgências e colunista do "Charlie", explica o ferimento no maxilar sofrido por outra vítima, Philippe Lançon, que também é jornalista do "Libé".

Simon Fieschi, o webmaster deles, "foi posto em coma artificial". Uma jovem desaba em lágrimas. "Você não tem que se sentir culpada", Gérard Biard a consola. Todo o mundo concorda com gestos de cabeça. Quem está chorando é a jornalista Sigolène Vinson, que estava presente na redação na hora do drama, na quarta-feira, mas foi poupada pelos atiradores.

Biard repassa os nomes dos mortos. Como organizar os funerais? E a homenagem nacional? Com que música? Nada de bandeiras, certo? "Não é caso de fazer uma coisa simbólica que eles próprios teriam detestado", observa alguém em volta da mesa.

"Mataram pessoas que desenhavam hominhos. Nada de bandeiras. Temos que lembrar a simplicidade desse pessoal, o trabalho deles. Nossos amigos morreram, mas não vamos expô-los em praça pública." Todo o mundo concorda.

Assinatura em massa
Uma jornalista explica que uma "caixinha" criada espontaneamente na internet por desconhecidos já recebeu 98 mil euros em menos de 24 horas. Os sobreviventes do "Charlie Hebdo" estão recebendo uma enxurrada de pedidos de assinatura que ainda não estão conseguindo processar. Mas dentro em breve eles vão receber ajuda do grupo Lagardère para lidar com isso.

O advogado do "Charlie Hebdo", Richard Malka, toma a palavra. "Há dinheiro chegando de todos os lados. Ajudas de vários tipos, locais, pessoal para cuidar do que precisa ser feito." "Recebemos o apoio de muitos veículos de mídia", confirma Christope Thévenet, outro advogado do jornal. "Estão chegando doações, já recebemos 250 mil euros através da Associação Imprensa e Pluralismo, há o milhão de euros prometidos por Fleur Pellerin. Vocês aqui no 'Charlie' terão mais verbas do que jamais tiveram!".

O advogado sabe do que está falando: foi ele quem redigiu os estatutos do jornal e comanda suas assembleias gerais. Nos últimos meses o "Charlie" tinha lançado um apelo por doações para tentar sair do vermelho.

"E aí, vamos fazer o jornal?" pergunta Gérard Biard, visivelmente querendo fazer a reunião decolar. "O que vamos colocar nas páginas?" "Sei lá, o que há em matéria de últimas notícias?" responde Patrick Pelloux. Risos nervosos.

Biard prossegue: "Para mim, devemos fazer um número normal, entre aspas. Para que os leitores reconheçam o 'Charlie'. Que não seja uma edição excepcional." "Não seria má ideia", comenta alguém em volta da mesa.

Algumas pessoas aventam a ideia de deixar espaços brancos nos lugares onde os mortos da quarta-feira teriam escrito ou desenhado. Mas a equipe acaba decidindo que não o fará. "Não quero que haja um vazio material", argumenta Gérard Biard. "Todas as páginas precisam estar lá. E Mustapha, também." Mustapha Ourrad, o revisor, faz parte da longa lista dos mortos no atentado da quarta-feira. "Então deixe meus erros ficar!", dizem Patrick Pelloux e os outros, brincando.

"Opa, Fidel Castro morreu!" anuncia Luz, fazendo um gesto obsceno com o dedo médio ao descobrir a informação (desmentida logo depois) em seu telefone. O repórter Laurent Léger tenta centrar a discussão sobre o jornal outra vez: "Acho que a gente não deve fazer obituários. Não vamos fazer uma edição de homenagem."

A redação discute o conteúdo do jornal. Gérard Biard: "Espero que parem de nos tratar como leigos fundamentalistas, que as pessoas parem de dizer 'sim, mas...' à liberdade de expressão." Laurent Léger: "A edição também precisa falar do que vem depois." Corinne Rey: "Vamos transmitir a mensagem de que estamos vivos." Richard Malka: "E que não vamos deixar de criticar as religiões."

O "Charlie Hebdo" é um jornal curioso: não tem seções propriamente ditas, mas "espaços" atribuídos a esse ou aquele autor ou desenhista. Para os espaços dos mortos, a equipe decide procurar materiais inéditos deles para publicar. Assim, Charb, Cabu, Wolinski e Honoré estarão na edição que chegará às bancas na quarta-feira. Durante as discussões ouvem-se choros ocasionais, como incêndios rápidos que começam e então se apagam nos braços da pessoa ao lado. Há pessoas que se dão as mãos e olhares molhados de lágrimas.

Richard Malka pigarreia: "Manuel Valls acaba de chegar na redação". A equipe suspira, se espalha, faz brincadeiras. Acompanhado da ministra da Cultura e da Comunicação, Fleur Pellerin, que ostenta um adesivo de "Je suis Charlie" sobre o peito, e de todo um grupo de jornalistas de fora, assistentes e comunicadores, o primeiro-ministro vem cumprimentar os presentes com apertos de mão, soltando algumas informações sobre a intervenção em curso em Dammartin-en-Goële -"os dois assassinos caíram na ratoeira"-e então fazendo votos de "muita coragem" a todos.

Biard pergunta: "Não vamos ter mais jornalistas? E mais ministros? E para a página 16, o que fazemos?" A pergunta se perde no barulho das latinhas de Coca sendo abertas, dos pães de chocolate mastigados, das lágrimas sufocadas, das sirenes de polícia do lado de fora. Em seu canto, Patrick Pelloux dá risada: "Isto sim é uma verdadeira reunião de pauta. É uma zona! Recomeçamos bem."

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Tradução de Clara Allain - Folha de de S. Paulo

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