sábado, 17 de janeiro de 2015

O cotidiano invisível

• Em novo livro, José de Souza Martins reflete sobre o embate entre as transformações no dia a dia da sociedade.

• "Nossa sociedade tem sido historicamente uma sociedade de poucas possibilidades de inovações e transformação"

Márcio Sampaio de Castro – Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Defensor apaixonado da investigação dos fenômenos aparentemente menos importantes da vida cotidiana na prática sociológica como técnica valiosa para a compreensão dos chamados aspectos invisíveis da sociedade, José de Souza Martins, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), acaba de lançar em forma de livro suas reflexões sobre o tema.

Admirador de Florestan Fernandes (1920-1995), seu professor nos anos de graduação na mesma instituição, da obra de Charles Wright Mills (1916-1962) e, sobretudo de Henri Lefebvre (1901-1991), Martins deixa claro em seu "Uma Sociologia da Vida Cotidiana" (Contexto, 224 págs.) que o ponto de aproximação entre esses autores foi a capacidade de produzir investigações baseadas no artesanato intelectual e na chamada imaginação sociológica. Talvez o exemplo mais eloquente venha do francês Lefebvre, que durante um tempo trabalhou como motorista de táxi em Paris para capturar a essência daquilo que classificava como as incógnitas do vivido.

Martins, admirado por seus pares e alunos por possuir impressionante capacidade de extrair dos pequenos eventos reflexão profunda sobre o embate entre as incessantes transformações e a permanência das tradições no interior da sociedade, expõe alguns dos elementos que aparecem em sua mais recente obra.

Valor: Seu mais novo livro, "Uma Sociologia da Vida Cotidiana", nasceu de uma disciplina criada pelo senhor na USP. Em sua opinião, a academia tem perdido o traquejo de como pensar as pequenas questões do cotidiano e, a partir daí, transportá-las para uma leitura estrutural da sociedade?

José de Souza Martins: A academia não poderia perder o que não tinha. Nas ciências humanas, a grande tradição sempre foi a de pesquisa e estudo das estruturas e processos sociais, sem maior interesse por sua dimensão microssociológica. Lentamente, no entanto, vem tomando consciência e ganhando compreensão, em todos os campos do conhecimento, da importância crescente das "coisas pequenas" e da vida cotidiana na realidade social, econômica, política e histórica. Pesquisadores têm sublinhado que a própria Revolução Francesa foi detonada pela reação da população do bairro parisiense de Saint Antoine à elevação do preço do pão, um banal acontecimento bem cotidiano.

Valor: No Brasil, há quem diga que o país precisa mais de engenheiros do que de sociólogos. Em sua obra, ao tratar da imaginação sociológica e do artesanato intelectual, o senhor retoma pensadores clássicos como Wright Mills, Henri Lefebvre, Florestan Fernandes, Gilberto Freyre (1900-1987) e, claro, os fundadores do pensamento sociológico. Cita ainda a obra de Guimarães Rosa (1908-1967) como exemplo dessa imaginação e prática sociológica. Sob o ponto de vista qualitativo, essa é uma falsa polêmica?

Martins: Certamente é uma falsa polêmica. Os engenheiros estão sendo substituídos pelo computador e a engenharia de aplicação está se concentrando em funções que até há pouco tempo eram desempenhadas por técnicos e artesãos. A sociologia não é imune à tendência geral da divisão social do trabalho nem disputa espaços com outras especialidades. No meu livro "A Aparição do Demônio na Fábrica" [Editora 34] analiso um caso ocorrido em grande indústria da região do ABC, em meados dos anos 1950, que presenciei, decorrente de um problema de engenharia que os engenheiros podiam resolver no plano técnico, mas não no plano dos problemas sociais por ele causados. Os engenheiros não conseguiam ver nem compreender o pânico que tomou conta das operárias de uma das seções da fábrica, cujos problemas técnicos acreditavam ter sido causados por Satanás, por falta de benzimento dos equipamentos de uma nova fábrica. Na falta de sociólogo, a empresa improvisou chamando o padre...

Valor: Alguns movimentos recentes, como os "riots" de Londres (2011), as manifestações em Ferguson, nos EUA (2014), e as marchas de junho (2013) no Brasil, parecem apontar para sentimentos de insatisfação e frustração maiores e mais difusos do que as reivindicações inicialmente formuladas. Outro ponto comum curioso é a ausência de lideranças expressivas. O que esses movimentos indicariam?

Martins: No meu modo de ver, houve um retorno das ações sociais ao âmbito do chamado comportamento coletivo, o comportamento de multidão, estudado por Gustave LeBon [1841-1931] no século XIX. Essa modalidade de ação havia evoluído para os movimentos sociais após a Segunda Guerra e durante cerca de 50 anos foi o modo como as sociedades se manifestaram em relação a suas carências e reivindicações. A própria sociologia, mesmo sem pretendê-lo, contribuiu para que os movimentos sociais, ao explicá-los, fossem institucionalizados. Governos, partidos, igrejas incorporaram essas tensões e definiram-lhes caminhos. Estamos vendo isso aqui no Brasil: os movimentos sociais deram origem ao Partido dos Trabalhadores. No poder, o PT os capturou e instrumentalizou. Os movimentos sociais foram domesticados e esvaziados. É compreensível que aqui e em outras sociedades as tensões sociais explodam na forma de ações coletivas diretas, o chamado comportamento coletivo, imprevisível. Essas ações também serão capturadas e domesticadas, o que desencadeará novas modalidades de protesto e de reivindicação. É o que propriamente define a sociedade pós-moderna.

Valor: A questão do tempo no capitalismo aparece em diversos pensadores da modernidade, como David Harvey, Wolfgang Streeck ou Zygmunt Bauman. Em sua obra, o senhor aborda especificamente a respeito da "abreviação do tempo social". A aceleração de seu ritmo teria levado à crise das utopias, ao esvaziamento dos movimentos sociais, ao declínio da representação política e até à religiosidade de uso materialista. Como esse processo avassalador se consolidou em tão pouco tempo?

Martins: Quem levantou a temática da nova temporalidade da sociedade contemporânea foi Henri Lefebvre, filósofo e sociólogo, nos três volumes de sua monumental "Critique de la Vie Quotidienne", logo depois da Segunda Guerra, seguido por Ágnes Heller, que foi assistente de Georg Lukács [1885-1928], tema que este também havia tratado no primeiro tomo da "Estética". A temporalidade do agora, do dia, dos minutos sobrepôs-se ao tempo histórico e criou a "sociedade do atual" e sua dominância, como de certo modo pensa o francês Michel Maffesoli. Atualidade reduzida ao provisório e descartável. Surgiu, assim, uma sociedade dominada pelo desapreço à dimensão histórica da vida e, também, uma sociedade pobre de esperança, o que se expressa no egoísmo e na mesquinharia, na apologia do "tirar vantagem". Uma sociedade adversa para os jovens e as crianças. No lugar da utopia, apenas o "viver o instante", o meramente repetitivo ou, na perspectiva lefebvriana, a práxis mimética, em que o repetitivo fica mascarado pelo fingimento da inovação e da revolução.

Valor: É curiosa a análise que o senhor faz das transformações da religiosidade no interior da sociedade brasileira.

Martins: A religiosidade, isto é, o modo de praticar as religiões, tem tido peculiaridades que, justamente, nos remetem para o que se poderia chamar de "refabricação" das crenças no cenário de "liquefação" das grandes estruturas sociais de referência, sendo a das religiões uma das mais poderosas. Entre nós desenvolve-se uma religiosidade "ad hoc", de ocasião, não raro remendo e colcha de retalhos de crenças que em outras partes têm demarcações precisas e até limites que não podem ser transgredidos.

Valor: O senhor afirma que há um mimetismo político, em que as forças conservadoras não se propõem a representar o seu lugar histórico, enquanto os portadores ideológicos do discurso da mudança foram capturados pelo conformismo da institucionalização. Na prática, como isso tem funcionado?

Martins: A dominância da práxis mimética se manifesta na teatralização da política, no fingimento e no autoengano como máscaras constitutivas da ação política e das relações sociais. A esperança política foi traduzida no mero faz de conta: o importante é o que se vê e o que se deixa ver e não o que se faz nem o que resulta das ações e dos relacionamentos sociais. A mentira se tornou uma instituição, que atravessa desde nosso cotidiano até o cotidiano do rei - ou da rainha!

Valor: O senhor afirma que a consciência social tem sido substituída pelo imaginário manipulável. Essa é uma situação especificamente brasileira?

Martins: Não é uma situação especificamente brasileira, que em diferentes lugares se propõe segundo condições e possibilidades locais. Nossa sociedade tem sido historicamente uma sociedade de poucas possibilidades de inovações e transformação. Tudo aqui é mais lento do que em algumas das sociedades dominantes. Entre nós, o desenvolvimento desigual se dá por grande descompasso entre o real e o possível, coisa que nas sociedades dominantes é muito menos grave. Nelas o possível está muito perto. Aqui o possível, como na história de Alice, de Lewis Carroll, quanto mais se anda, mais longe se fica.

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