quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Roberto DaMatta - Sou Charlie e antropólogo

• Liberal, aceito a liberdade de ofender com palavras, não com tiros

- O Globo

A eliminação do “Charlie Hebdo" por dois jovens radicais islâmicos, em paralelo ao ataque com reféns a um mercado judeu por outro extremista, confirma o inesperado — esse traço com que a vida se faz e que marca todas as vidas.

O evento abominável levou-me à Paris idealizada de onde recebi um cartão-postal com os desejos de um Feliz 2015! Pensei no meu amigo vivendo o charme parisiense ser englobado pelo terrorismo que suspende a plausibilidade das rotinas e percebi uma mudança no jogo contínuo e necessário das nossas identidades. A Paris simbolizada pela racionalidade foi roubada pelos radicais islâmicos, que não aceitam a ética da liberdade conquistada e declarada como universal justamente na França.

A tragédia engendrou a oposição ser civilizado (Charlie) e francês ou ser muçulmano (radical). A configuração do ser humano em papéis sociais a serem desempenhados livremente num mundo que se supõe aberto e progressista, viu-se reduzida por uma clássica dualidade. Agora todos somos franceses (vítimas e aparentemente cristãos) ou radicais islâmicos. Eis o triunfo dos extremismos, que têm resposta para tudo e só admitem a verdade do seu credo. Somem as escolhas quando a liberdade é assassinada em nome de uma guerra religiosa. Ela também demonstra que o maior medo dos radicais não é um outro radicalismo, mas o riso e o humor que carnavaliza e sublima.

Vi o terremoto cosmológico promovido pela imobilidade irreversível da morte. Algo aterrorizante porque um lado da questão foi violentamente eliminado como mostra a literatura mais do que as “ciências sociais", num mundo construído para esquecê-la (e superá-la pela ciência). Eis, suponho, um dos focos da vertigem: a recusa a escutar num mundo interligado por próteses que, incessantemente, prometem resolver problemas. Esquecidos de que informação exige a abertura para o alternativo e um esforço de compreensão, vivemos a insegurança e a revolta.

Sou Charlie porque o massacre esfrega na minha cara o paradoxo da imobilidade das crenças — essa dimensão básica dos radicalismos e da própria humanidade — num mundo marcado por muitas línguas, crenças e conjunturas que as desafiam. Liberal, aceito a liberdade de ofender com palavras, não com tiros.

Mas o que é, afinal, esse esplêndido Ocidente, senão a prova do movimento corajoso das crenças para as ideologias político-científicas libertadoras dos credos religiosos mas criadoras de déspotas, guerras mundiais, holocaustos e racismos? Não se pode negar o avião ou um antibiótico, mas não se pode esquecer de que só o descrente acredita que o crente acredita em Deus; pois, para ele, sua crença é conhecimento concreto.

Mas não seria uma outra crença e um outro radicalismo imaginar uma humanidade sem crenças? Uma pessoa sem uma língua ou valores seria um ser inclassificável. Ela denegaria a nossa humanidade que, conforme acreditamos, tem direito à liberdade de ser radicalmente descrente e capaz de todas as heresias.

Sendo Charlie, mas sem deixar de ser antropólogo — um estudante dos encontros humanos —, lembro-me de Lévi-Strauss quando ele ressaltava o etnocentrismo. O fato de que nossas línguas e crenças nos constituem como centros do mundo. Os ameríndios viram os espanhóis como deuses e estes — conquistadores! — duvidaram se aquelas criaturas tinham alma e seriam seres humanos de verdade.

Vejam a ironia: a era das Grandes Descobertas Marítimas — os séculos 15 e 16 —, com a consequente catequese e destruição das civilizações e culturas do chamado “novo mundo", coincide significativamente com as “guerras religiosas" na Europa, as quais — por seu turno — freudianamente repetem as “guerras santas" e “jihads” entre cruzados e infiéis islâmicos iniciadas no final do ano 1000. Seria um exagero dizer que a noite do “Massacre de São Bartolomeu" — 24 de agosto de 1572 — quando foram mortos dois mil protestantes, na contagem católica; e 70 mil, na contagem protestante, foi o evento fundador do fundamentalismo ocidental. Dele, foram paridos outros radicalismos que não admitem meio-termo, indecisão, mais ou menos ou incomensurabilidades como ser materialista e ter Exu como padrinho. Ser um “respeitador de todas as crenças", como dizia mamãe, sem saber mas sabendo, que a incerteza (que suspende uma identidade como algo exclusivo e arrebatador) é a matriz da moderação.

Mamãe sorria das minhas convicções radicais. Para ela, tudo tinha conserto. Hoje, velho e suspeitoso por oficio do óbvio ululante, continuo um crente na liberdade como um valor e no valor da liberdade. Mas estou profundamente decepcionado. Minha esperança é que o bom senso vença a fúria radical.
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Roberto DaMatta é antropólogo

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