quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Eliane Cantanhêde - Aqui nas nossas barbas

- O Estado de S. Paulo

Não foi por falta de aviso que a presidente Dilma Rousseff caiu em mais essa esparrela: se ver, neste momento, perigosamente atrelada ao curioso e decrépito regime da Venezuela, onde Nicolás Maduro está literalmente caindo de maduro. O Itamaraty bem que avisou.

Ainda no primeiro mandato, aquele que já foi tarde, o então chanceler Antônio Patriota procurou a presidente para alertar que a coisa ia de mal a pior e sugerir que o Brasil mantivesse uma distância cautelosa, para não se contaminar nem inviabilizar o diálogo com a oposição (que pode vir a ocupar o poder um dia...).

Cheio de dedos, possivelmente morrendo de medo da presidente (ou "presidenta"...), Patriota relatou que os informes recebidos de Caracas pelas vias oficiais, diplomáticas, davam conta de uma deterioração acentuada do regime: recessão, inflação galopante, grave desabastecimento e até declínio das tão badaladas missões sociais, as "misiones".

Não se sabe como ele disse, mas o objetivo foi dizer que Maduro estava perdendo o controle da situação, a oposição se fortalecia e, portanto, seria conveniente aos interesses brasileiros e à imagem internacional do Brasil enviar sinais de descolamento do regime.

Dilma, que ouvira calada do início ao fim, cruzou os braços, mirou Patriota olho no olho e, conforme relatos, perguntou com jeitão de poucos amigos: "Acabou, chanceler?" E praticamente pôs Patriota porta afora.

Arminio Fraga diz que, na era PT, a economia é carregada de ideologia. Pois isso cabe como uma luva também para a política externa, que deixa de lado o pragmatismo conveniente aos interesses nacionais para agir na base de dois pesos, duas medidas.

Quando a Câmara, o Senado, a Justiça e a opinião pública aprovaram o impeachment do presidente Fernando Lugo dentro dos preceitos legais e constitucionais do país, o Brasil foi rápido no gatilho: condenou publicamente e liderou ligeirinho o movimento para suspender o Paraguai da Unasul e do Mercosul.

E agora, quando o governo Maduro manda prender o prefeito de Caracas, Antonio Ledezma, e não se vexa de invadir as sedes dos partidos de oposição? Uma nota daqui, outra dali, sempre escritas no Planalto e sem uma condenação explícita nem ao governo nem à ação típica e escancaradamente antidemocrática.

Fica aquela dúvida: aprovar o impeachment de um "cumpanheiro" de esquerda dentro da lei fere as suscetibilidades do governo brasileiro e as regras democráticas da Unasul e do Mercosul. Mas prender arbitrariamente o prefeito da capital e invadir as sedes dos partidos adversários são ações legítimas, aceitáveis?

O governo Maduro diz que se previne contra um golpe, mas não mostrou até agora uma mísera prova de conspiração de Washington, Prefeitura de Caracas, oposição e Forças Armadas - que, aliás, tanto ajudaram Hugo Chávez - para derrubar Maduro.

Ao contrário, é evidente que Maduro é quem trabalha contra Maduro. Seu governo é um desastre histórico para a Venezuela, para os venezuelanos, para o legado de Chávez e, claro, para sua própria biografia.

A prisão de Ledezma e a invasão dos partidos nada mais é do que um velho truque de governos aflitos e acuados: criar inimigos externos e miragens para tentar sobreviver à sua própria incompetência, à própria tragédia imposta a seus países e cidadãos.

E o Brasil com isso? O Brasil, como maior economia, maior território, maior população e principal líder político da região, deveria parar com isso de sobrepor as simpatias ideológicas aos interesses dos cidadãos.

Democracia é um conceito elástico, mas nem o mais ingênuo dos ingênuos pode considerar democrático o que ocorre na Venezuela, aqui nas nossas barbas. O Itamaraty sabe disso, mas quem manda é a presidente e sua assessoria, que fingem não saber. É aí que mora o perigo.

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