sábado, 14 de fevereiro de 2015

Graziela Melo - A fuga para Santiago

O sol estava se pondo por trás do Cristo Redentor quando deixei o Hospital da Lagoa, no Jardim Botânico. A Zona Sul do Rio de Janeiro foi ficando para trás, cada vez mais, pelo vidro do táxi enquanto eu seguia para Tiradentes com uma grande tristeza no coração. Foi nosso ultimo dia de Brasil. Carregava comigo o Zé. Conseguira com a Drª. uma alta forçada, argumentando que se ficasse no Brasil morreriam os dois: o pai e o filho. Fugindo, salvaria o pai e o filho teria uma chance de sobrevida e o convívio da família. A Drª. entendeu. Cooperou. Fez extenso relatório com todos os detalhes da leucemia que abatia meu filho. Quantidade de glóbulos brancos e vermelhos, etc. Junto com a papelada entregou-me várias doses do remédio que deveria tomar durante a viagem. Até hoje sinto gratidão por essa mulher que, sem me conhecer, partilhou minha dor e, de sua parte fez o que pôde.

Apenas vinte e poucas horas entre a alta do Zé e o horário da fuga. Procedemos assim para ganhar tempo. Quando o Zé viesse a ter outra crise, o certamente ocorreria, queríamos já estar em Santiago com a segurança de assistência médica. Nesta mesma tarde contratamos um táxi para nos deixar na Rodoviária na madrugada seguinte a esta noite. Dissemos às crianças que passaríamos uma semana em Petrópolis para que nossa saída não chamasse tanto atenção dos vizinhos. Afinal, estávamos fugindo. Só quando atravessamos a fronteira, 72 horas depois de termos saído da Rodoviária Novo Rio, Giba se queixou de como Petrópolis era longe, foi que contamos a verdade.

Até agora não mencionei o fato de que minha mãe estava comigo. Viera de Recife para me ajudar. Quando comprei nossas passagens para Porto Alegre, comprei a dela de volta para Recife no mesmo dia e hora. Era mais uma carga emocional a me atormentar.

Antes de ir para nosso ponto de embarque rumo ao sul, deixei-a no ponto de ônibus para Recife e nunca mais pude esquecer seu olhar de despedida. Era como se dissesse: “adeus filha, até nunca mais”. Viajei com a amarga sensação de que fora a última vez que a vira. Mas não! Ela resistiu, como vocês verão em outro capítulo. Aproveitou bem os corredores da clandestinidade e via terceiros, me fazia chegar cartas ao Chile e a Cuba. Esperou meu regresso e só morreu seis meses depois da nossa volta ao Brasil. Valeu mãe!

A mãe de Gilvan, minha sogra, não teve a mesma sorte. Depois de vários anos internada numa clinica de doentes mentais, faleceu sem nunca mais haver reconhecido o filho que retornara do exílio e por quem tanto lutara no vai e vem das prisões e auditorias militares do regime. A guerreira foi embora sem saber que a guerra acabara. Só dois anos depois pudemos, junto com meus cunhados, acompanhar a retirada dos ossos. Valeu sogra!
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Graziela Melo
Janeiro, 1984.

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