terça-feira, 10 de março de 2015

Arnaldo Jabor - Elas

• As mulheres foram e são oprimidas e estupradas na alma e no corpo, inclusive no Brasil

- O Globo

Escrevo hoje no domingo sobre o Dia Internacional da Mulher. Sempre que chega esse dia, nós, machistas, elogiamos o lado “abstrato” das fêmeas, sua delicadeza, sua capacidade de perdão (sic), sua coragem, em textos de hipocrisia paternalista, como se falássemos de pobres, de crianças.

No Oriente e na África vemos o auge da violência: castrações, estupros impunes, pais condenando filhas, tudo de horrível. Mas no resto do mundo também sobrevivem muitas formas mais sutis de opressão e desprezo. Socialmente são discriminadas no trabalho, ganham menos que os homens, sofrem assédio nos empregos. As mulheres foram e são oprimidas e estupradas na alma e no corpo, inclusive no Brasil.

Várias amigas me pediram: “Escreve, escreve sobre a Mulher!...” .

Só que “A Mulher” não existe. Eu nunca conheci a Mulher. Eu já amei e odiei “mulheres”. Então, por que esse título genérico? Existe a mulher de burca, a stripteaser, existe a freira, a bondosa, a malvada, existem Eva e Virgem Maria. Esse nome geral também oculta diferenças profundas. Qual a relação de uma mulher do interior da Paraíba, na seca, catando água dos mandacarus com uma patricinha na balada em São Paulo? O que iguala uma pobre mulher castrada no Iraque e uma gostosa da televisão?

O que as unifica é nosso ódio, sim, o ódio secreto dos homens na historia do machismo milenar. Elas são oprimidas por serem mais fracas, elas provocam inquietação com sua beleza cambiante, elas instilam dúvidas nos homens que só desejam as certezas, elas são o perigo para o sofrimento de cornos milenares, elas nos desorganizam e nos levam à submissão pelo amor e pelo tesão. Daí o ódio que os primitivos cultivam contra elas, daí os boçais assassinos do Islã apedrejando-as até a morte, daí os mitos negros como Lilith ou Jezebel ou ladies da morte como Macbeth. A mulher não é um enigma. Nós é que somos, disfarçados de sólidos. Os homens são óbvios. As mulheres não sabem o que querem; o homem acha que sabe. O masculino é certo; o feminino é insolúvel.

A mulher deseja o impossível; desejar o impossível é sua grande beleza. É um preconceito essa mania de dizermos que as mulheres são “incompreensíveis” (mesmo Freud). Mas essa confusão na cabeça das mulheres não é maluquice; nessas cabeças complexas há uma verdade indeterminada mais profunda do que as ilusões masculinas. Homem tem um “fim”. Mulher abre-se num horizonte com muitos sentidos e está sempre equivocando o homem.

Eu sou hoje o que as mulheres fizeram comigo ou o que eu aprendi com elas, no amor ou no sofrimento. Eu descobri defeitos e qualidades que me formaram, como acidentes que me foram desfigurando. Com elas, loucas, sóbrias, boas e más, descobri que não têm forma nem lógica e que eram quebra-cabeças: ao tentar armá-los, eu aprendia novos labirintos, descobria que também não tenho forma nem lógica e que sempre faltará uma peça na charada.

Elas ventam, chovem, sangram, elas têm inverno, verão, TPMs, raiam de manhã ou brilham à noite. E os homens olham perplexos. Elas querem ser decifradas por nós, mas nunca acertamos no alvo, pois não há alvo, nem mosca. As mulheres são sempre várias. Isso não as faz “mobiles” nem traidoras; nós é que nos achamos “unos”.

Aliás, o único grande mistério talvez seja a divisão entre os sexos. Por mais que queiramos, nunca chegaremos lá. Lá, aonde? Lá na diferença radical onde mora o “outro”. Há alguns exploradores: os veados, sapatões, travestis que mergulham nesse mar e voltam de mãos vazias, pois nunca saberemos quem é aquele ser com útero, seios, vagina, aquele ser maternal, bom, terrível quando contrariado no ponto G da alma. Por outro lado, elas nunca saberão o que é um pênis pendurado, um bigodão, a porrada num jogo do Flamengo, um puteiro visitado de porre, nunca saberão do desamparo do macho em sua frágil grossura. Elas jamais saberão como somos. O amor é a tentativa de pular esse abismo.

Uma leitora, que se disse “perua inteligente”, me escreveu: “No Brasil, como sempre, somos diferentes e mais óbvios. Aqui, as mulheres eram escravas passivas, hoje somos ativas, mas continuamos escravas. Mesmo sendo frígidas, temos de prometer ‘funcionamento’. Não é por acaso que eles nos chamam de ‘aviões’. É só olhar as revistas masculinas.

A publicidade é toda em cima de sexo’”. É a cultura das periguetes. Em nenhum lugar do mundo vemos as barrigas à mostra, as roupas tipo “fuck me now” mesmo em meninas visivelmente tímidas e caretas.

Na mídia, só vemos estímulos para as mulheres buscarem a bunda perfeita, bundas ambiciosas querendo subir na vida, bundas com vida própria, mais importantes que suas donas, próteses de silicone, sucesso sem trabalho, anúncio de cerveja com louras burras, mulheres divididas entre a ‘piranhagem’ e a ‘peruíce’, sorrisos luminosos de celebridades bregas, passos de ganso de manequins. A bunda é a esperança de milhões de cinderelas. O corpo tem de dar lucro. As mulheres querem ser disputadas, consumidas. Ficam em acrobáticas posições ginecológicas para raspar os pêlos pubianos nos salões de beleza e, depois, saem felizes com uns bigodinhos verticais que lembram o Hitler ou o Sarney. O que está acontecendo no Brasil é a libertação da mulher-objeto. A liberdade de mercado produziu o mercado da “liberdade”.

Mas não é como vítimas que devemos lamentá-las ou louvá-las . Sua importância é afirmativa, pois elas estão muito mais próximas que nós da realidade deste mundo aberto, sem futuro ou significado. Elas não caminham em busca de um “sentido” único, de um poder brutal. O homem se crê acima do mistério, mas as mulheres estão dentro. São impalpáveis como a realidade que o homem “pensa” que controla.

O Dia Internacional devia estimular uma ação política das mulheres, não apenas para defender seus direitos, mas para condenar a civilização de machos boçais que destroem nosso destino.

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