domingo, 1 de março de 2015

João do Rio - ‘Chegada de um estrangeiro ao Rio’

• Em crônica dos anos 1910, autor imagina o espanto de um visitante com as maravilhas e mazelas do dia a dia carioca

- O Globo / Prosa – 28/2/2015

RIO - Um príncipe egípcio com quem me dava em Paris, depois de tê-lo encontrado na curiosa devassidão dos hotéis do Cairo, aprazia-se em contar uma anedota cheia de filosofia.

— O meu amigo Omar-bey, dizia o príncipe, ia por uma estrada quando lhe saltaram à frente: “Já todo o teu dinheiro para aqui! Já! Já ou me obrigarás a fazer o que nunca fiz na minha vida...” Omar-bey deu todo o dinheiro, mas não conteve a curiosidade: “Que ia você fazer, honrado ladrão? Decerto assassinar-me?” “Não, senhor, respondeu o homem, ia trabalhar...”

O príncipe, depois da anedota, prolongava os paradoxos sobre o horrível trabalho. Trabalhar é realmente uma coisa séria para os desocupados, que chegam aos maiores excessos de trabalho para não o fazer. Eu estou numa quadra da vida em que já prefiro não agir, mas seria incapaz de dar a bolsa como Omar-bey ou de atacar um homem, só para não tornar a trabalhar.

Ao contrário. Quando deixei a Europa, uma pequena “vila” de S. Remo, onde a vida é doce e barata, para o repouso de uma febril e atroz peregrinação pela podridão das cidades da Índia, o meu desejo era examinar com olhos de ver uma sociedade que ainda não tivesse sido pintada — “algo nuevo”, um aspecto inédito. Vim para a América do Sul, ciente de que o “algo nuevo”, o aspecto inédito estavam nesse pedaço de planeta, que todos os livros de propaganda não conseguiram deflorar. Para onde iria eu? Comprara uma passagem completa. Podia saltar em qualquer porto ou ir até ao fim. Buenos Aires? Montevidéu? Pernambuco? Bahia? Como o bando transatlântico falava excessivamente de Buenos Aires, logo me desgostei, porque não era meu fim, deixando S. Remo, a horas de Milão e a horas de Paris, para ir contemplar montras de chapéus e elegâncias boulevardières noutro hemisfério. Talvez andasse errado. Entretanto, não saltei em Pernambuco. Fazia imenso calor. O mar estava tremendo. Negros em pirogas esguias pareciam gênios do elemento, com o dorso quase nu e facalhões à cinta. Os passageiros falavam de tubarões. O comandante falava de varíola. Custei mesmo a saltar na Bahia, para não ficar, aliás, não porque aquele estranho panorama, o exotismo das ruas baixas, deixassem de atrair, mas exatamente pelas notícias de epidemia que a bordo fervilhavam.

Foi a Bahia que me decidiu a ficar no Rio. O transatlântico chegava à noite, uma escura noite cor de tinta. Em volta ao paquete o movimento de embarcações, entre gritos, silvos e ordens sopradas em porta-voz, dava a ilusão pouco tranquila de uma abordagem de piratas amáveis. A invasão das dependências de bordo por cavalheiros gritadores, a maioria com um olhar infantil, quase todos com anéis nos dedos, alargava essa impressão num sorriso de curiosidade.

As autoridades e o serviço imprevisto dos funcionários da polícia vincavam na alma do mais indiferente a necessidade de descer. O viajante tem uma ficha da civilização do porto em que para pelo aspecto da autoridade primeira. É definitivo. O homenzinho que tomava conta de uma das escadas, fumando um charuto, suando, dando ordens e lastimando-se amavelmente do seu imenso trabalho — o que não o impedia de prestar vários favores aos passageiros, um dos quais e principal era desembarcar — parecia um ministro. Era o ministro da segurança ou da alfândega. Tamanha autoridade, cujo grau até hoje ignoro, não deixava de despedir os viajantes estendendo-lhes a mão. De cinco em cinco minutos, fazia exclamações apelando para os jornais, para a imprensa, que certo ainda não lhe fizera inteira justiça.

— E os jornais, bradava ele, não veem isso!

— Isso o quê? interroguei um negociante de vinhos portugueses, possuidor de um tremendo ventre e de um imenso patriotismo duplo luso-brasileiro.

— Ora, o imenso trabalho dele, a falta de pessoal.

— Mas que tem a imprensa com isso?

— A imprensa tem com tudo. Vou cumprimentá-lo a ver se passo agora as minhas malas.

Era bem um tipo de brasileiro aquele funcionário com a sua fanfarronice, a ausência democrática de respeito pelas posições, a leviandade, o amor ao barulho?

Não sabia. Mas como um guarda barbudo no Tejo dera-me uma impressão de melancolia, esse deu-me a sensação de um país de sarabanda, pitoresco à farta, onde se poderia estudar algo como a composição de uma raça nova.

Saltei com as malas às 9 horas da noite para uma lancha de que até hoje ignoro o verdadeiro dono. Por que ia eu ali? Por acaso. Quis ver qual era o dono para agradecer e pedir desculpa. Mas todos pareciam legítimos donos. Fui amável com todos. Ao chegarmos ao cais não nos conhecíamos. Quase perdi a minha valise. Um homem meio nu, de camisola de meia, descalço, calça arregaçada, mostrando a tíbia potente e cabeluda entre o povo de ociosos e de viajantes, arrebatara-a.

— Para onde vamos, patrão?

— Espere, deixe vir o resto da bagagem.

Outros nédios, bem dispostos e tão nus como o primeiro, insistiam para que eu tomasse um bote. Olhei, na semipenumbra, o desdobramento dos squares, a linha dos carros de praça e os meus olhos viram, ao lado de automóveis, uma espécie de condução que até aquele momento só tinham visto em gravuras cantando os feitos do dândi d’Orsay, em Londres, ou as elegâncias de Paris, em 1854. Os meus olhos viram os tílburis.

Acerquei-me de um. O cocheiro tinha uma bota descalça. Agitou-se entre a bota, as rédeas e o chicote alguns segundos.

— Para onde vamos, V. senhoria?

— Internacional, Santa Thereza, disse eu com a adresse que recebera a bordo.

— Ah! isso é lá em cima. O burro não sobe. Vou levá-lo à estação dos bondes.

— É muito longe? fiz com o vago receio do viajante solitário.

— Uma hora de viagem. É bonito.

— E outros hotéis por aqui perto?

— O Avenida! V. Ex.a fica bem...

O melhor para quem chega a uma cidade é morar, a princípio, num ponto bem central. Sempre fiz assim em Benares, como em Tóquio, em Nova York, como em Berlim. Acedi... O carro, cheirando mal, partiu. Devia datar de 1854, pelo menos. Era um tílburi saído de uma exposição retrospectiva de carruagens.


Curiosamente olhava as ruas, que me pareciam novas em folha, colocadas entre velhas vielas. Não demorou muito que meus olhos dessem num bulevar iluminado como para uma festa. Era a Avenida Central. Estava quase deserta, e os transeuntes, deixando as calçadas, andavam pelo meio da rua, calmos e tristes, forçando o tilbureiro a assobios, toques de buzina — porque esse tílburi tinha uma de automóvel — e a um som soprado entredentes, que jamais ouvira, e que só é possível grafar exatamente assim: “psssiu...” O som parecia um apelo, porque os transeuntes voltavam-se.

A viagem foi de minutos. Estávamos defronte do hotel, de excelente aparência americana. Apenas ninguém veio receber-me no movimento dos bondes e do povo.

Saltei, dei com uma porção de pequenos negócios, desde o engraxate ao vendedor de frutas, com as frutas expostas ao ar. Uma orquestra ambulante batia um pedaço de ópera. Vendedores de jornais gritavam. A iluminação era a de um dia.

Afinal, descobri a porta do hotel. Tinha um porteiro sentado, com um anel de brilhantes e bigodes torcidos.

— Deseja?

— Um quarto.

— Faz obséquio de subir.

Eu olhava a gaiola do ascensor imóvel. O porteiro informou:

— Não funciona. Quebrou a mola agorinha. Amanhã consertam.

Subi. No primeiro andar, dei numa peça que me parecia escritório, mas onde alguns senhores comodamente sentados, olharam para a minha pessoa, com evidente indiferença.

— Era possível um quarto?

— Ah! quer um cômodo? Em que andar?

— O melhor, quero o melhor quarto.

— Está ocupado.

— Então o que fica sendo o melhor vazio.


Tivemos que subir o segundo pavimento. Deram-me um imenso quarto, quase tão nu como os carregadores do cais. Havia uma cama perdida, um lavatório, um guarda-roupa, duas cadeiras, uma pequena mesa. Mais nada. O criado mostrava uma falta de interesse comovedora. Parecia estar a fazer-me um enorme favor, com pouca vontade, aliás. Devia ser rico. Como o porteiro, como os gerentes, como o funcionário da polícia, como o tilbureiro, como toda a gente. Lembrei-me do tilbureiro que ficara à espera.

Ah! mande subir as malas e pergunte ao tilbureiro quanto devo.

O criado desceu. Cheguei à janela e os meus olhos dominaram um espetáculo magnífico, a fulguração da Avenida. Aquela rua era uma apoteose permanente e era um símbolo. Mesmo não conhecendo o país, os costumes, a sua vida, sentia-se como um gigante criança que de súbito deixasse a selvageria e o berço das tradições para lançar-se como um desafio à corrente geral da civilização. O que eu vira era tão curioso que me deu vontade de sair logo, de circular, de sentir o caráter da cidade. Lavei o rosto e as mãos, esperando as malas. Penteei-me esperando o criado. Voltei à janela, olhei o esplendor, esperando ainda. Por fim toquei a campainha. Uma, duas, três vezes. Abri a porta raivoso. Dois homens tão nus como os catraieiros e o quarto traziam as malas.

— Enfim!

— Ah! Subir com tudo isso...

— Bom, entrem.

— O tílburi custou cinco mil réis. Os carregadores pedem três para trazer as malas.

— Hein?

Eu pagava quase doze francos por aquilo que devia no máximo custar uns três. Estava realmente no país dos milionários. Paguei. Não tinha remédio. E tornei a descer, meti-me na rua a circular. Estava na capital de que se começa a falar, no novo, no novo de ontem para os europeus como eu.

Apanharia a sua verdadeira feição, conseguiria dar a impressão exata dessa cidade, desse país, desse momento? Dobrei a primeira rua, a pé. Ninguém sabe a confusa mistura de sentimentos de um viajante ao aportar a uma cidade... Quando voltei ao hotel, eram três da manhã. Cheguei ainda à janela. A Avenida era um deserto com a mesma iluminação de apoteose. Lembrava um salão de baile, à espera dos convidados. Os convidados não faltariam porque as primeiras levas já deviam estar na sala de espera. E eu que não perdera o gozo de trabalhar sentia que estaria em breve vendo o trabalho de eclosão de uma terra nova para o progresso...

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*Crônica publicada no livro “Os dias passam...” (1912), de João do Rio, reeditado agora pela primeira vez na série Cadernos da Biblioteca Nacional.

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