domingo, 15 de março de 2015

Luiz Sérgio Henriques - O pessimismo da inteligência

- O Estado de S. Paulo

Difícil exagerar a importância do dia de hoje na marcha recente da democracia brasileira. A rigor, não se podem prever os desdobramento de manifestações convocadas segundo os novíssimos termos postos pelas redes, termos diferentes e até dissonantes entre si. A falta de direção publicamente reconhecida, de orientações compartilhadas além das bandeiras de protesto e até de alguma linguagem política comum, tudo isso faz deste domingo um enigma: numa boa hipótese, representará um momento mais positivo do que negativo, com a ativação da cidadania e do espaço público como laboratório de novas e inesperadas formas de ação.

No entanto, convém não só manter o otimismo da vontade, sem perder o pessimismo da razão, como também ir além desta bela frase e admitir que temos de nos preparar para o pior. Não se chega por acaso a uma situação de quase impasse como esta, com o envelhecimento de um governo recém-eleito, a relativa impotência das oposições, a natural linguagem babélica das redes e o grau não desprezível de desorganização da sociedade, submetida, como foi, a pressões intensas de cooptação e estatização.

Não se improvisa o subdesenvolvimento, cutucava Nelson Rodrigues, assim como não se improvisou o estado raso de nossa cultura política, aqui e agora. A arena pública parece ter-se degradado em confrontação feroz, disputa sem fim entre amigos e inimigos, vários tons acima do que requer a normal dialética democrática. O bê-á-bá desta última implica a legitimação recíproca dos adversários, excluídos obviamente os que se recusam a participar do jogo institucional e imaginam a mudança social ao largo dele.

As décadas da redemocratização, à parte os ganhos incomensuráveis trazidos pelo regime de liberdades, acostumaram-nos também a sobressaltos. Em relação às figuras presidenciais, por exemplo, com mais ou menos força, e pelo menos num caso com o desfecho do impeachment, ouvimos em sequência uma palavra de ordem cortante e imperiosa: "Fora, Sarney!", "Fora, Collor!", "Fora, FHC!". E já agora o "Fora, Dilma!", com menor orientação diretamente partidária, mas semelhante potencial de incêndio.

Ressalvado o direito de protestar, o qual, exercido dentro das regras, nunca tem o significado de terceiro turno ou qualquer outra imagem desastrada, é evidente que a reiteração daquela palavra de ordem e, especialmente, o estado de espírito que supõe deveriam fazer-nos pensar nos níveis de intolerância que não raro apontam para os riscos da ingovernabilidade, sem falar nos danos à simples convivência civilizada.

Responsabilidades existem e é justo distribuí-las. A direita ou a centro-direita - partidos, como o DEM ou o PP, que deitam raízes distantes no antigo partido de sustentação do regime militar - não teve nem tem força político-eleitoral efetiva. Estamos diante de agremiações de porte médio ou menos do que isso, para não mencionar a exótica circunstância de que a maioria delas, como o PP, o PR, o PRB, o PSD, participa do bloco petista de modo até equívoco, como demonstrou a Ação Penal 470 e agora começa a se evidenciar no caso da Petrobrás.

Um partido de centro ou centro-esquerda, como o heroico PMDB, mesmo tendo sofrido evidente involução, a ponto de se tornar incapaz de encabeçar um projeto nacional, jamais representou risco para a ordem democrática. E o segundo grande protagonista destes anos, o PSDB, salvo o já distante (e grave) episódio da reeleição, até pelo funcionamento basicamente parlamentar se enquadra no mesmo critério: podemos discutir erros e opções econômicas dos governos FHC, mas não sua decisão de jogar segundo as regras.

A emergência de uma esquerda forte é requisito das sociedades "ocidentais", como contraponto à desigualdade inerente aos mercados e certeza de que os "de baixo" terão adequada, mas não exclusiva, representação. E a esquerda hegemônica que tivemos, depois do esgotamento da tradição trabalhista e da comunista, reuniu-se em torno do PT. Um ganho substantivo para a democracia, se considerarmos a incorporação à cena política da então nova classe operária e também dos intelectuais - não só suas figuras tradicionais, como também a massa de intelectuais gerada pela modernização acelerada no regime militar.

Mais do que conhecido o "espírito de cisão" que acompanhou o novo partido: em relação à história, a negação do "populismo" e do nacional-desenvolvimentismo (aliás, problematicamente recuperado décadas depois de sua produtiva floração); em relação à política corrente, a dificuldade de entendimento com o centro democrático até nos momentos mais arriscados da transição (dificuldade depois transformada em ruidosa ação cooptadora a partir das alavancas do Estado).

Na hipótese melhor, dizíamos, a sociedade "ocidental" que somos (apesar de nós mesmos?) há de recuperar seus direitos e retificar este espírito de cisão estridente, próprio de forças no fundo imaturas para a direção de um país complexo, independentemente de triunfos eleitorais. Tal espírito só pareceu pacificado quando houve a impressão de cenário ocupado por um só ator. Seríamos então "todos lulistas", com um ou outro desvio exótico, ecoando o infeliz "todos somos peronistas" dos vizinhos argentinos. Duro de morrer, tal espírito ora ressurge na forma de luta entre "pobres" e "ricos", nacional-popular e elites cosmopolitas. Numa palavra, entre nação ("nós") e antinação ("eles"), inimigos cuja existência política se contesta mais ou menos veladamente.

Se isso fizer sentido, o pessimismo da inteligência tem aqui o justo lugar: com esta cultura orientada pela ideia exasperada de cisão, a esquerda não só não fará avançar sua imprescindível agenda, como se tornará devedora das instituições democráticas. Ou - questão cruel - já se terá tornado?

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Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das 'Obras' de Gramsci no Brasil

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