quarta-feira, 25 de março de 2015

O sofisma da 'nova moralidade' – Editorial / O Estado de S. Paulo

"Quando se combate a corrupção com firmeza, um efeito imediato é tirar do desconhecimento atos de corrupção que até então eram praticados. A impressão que fica é a de que todas essas ações aumentaram a corrupção, quando na verdade são medidas e instrumentos adotados para combatê-la." Esse primor de sofisma é obra do titular da Secretaria Nacional de Justiça, Beto Vasconcelos, que foi o responsável pela montagem do balaio de propostas requentadas que compuseram o pacote de medidas de combate à corrupção anunciado na semana passada pela presidente Dilma Rousseff com o objetivo de construir "uma nova moralidade pública".

É muito bom que a presidente da República se revele, finalmente, disposta a colocar a tranca depois de seu partido ter trabalhado com afinco por mais de uma década para arrombar a porta da moralidade pública. Mas seria melhor ainda se ela não instruísse seus porta-vozes a fazer pouco do discernimento dos brasileiros com a capciosa versão de que mais importante do que a corrupção, que nem seria tão grande assim, é a determinação do governo de combatê-la.

Ora, não se combate o que não existe. E o que existe é um escandaloso esquema de corrupção que, pelo menos ao longo de uma década, sangrou a maior estatal brasileira com o óbvio apoio dos governos petistas, já que se tratava de arrecadar recursos para o plano de se perpetuar no poder. E com a agravante de que esse foi o segundo grande assalto ao dinheiro do povo com o mesmo objetivo. O primeiro, o malfadado mensalão, botou na cadeia a quadrilha de dirigentes petistas levados a julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF). E isso sob protestos do PT, para quem seus líderes estavam apenas cumprindo uma missão patriótica.

Agora, Dilma pretende se vangloriar do fato de os governos petistas terem, como reafirmou Beto Vasconcelos, reconhecido a autonomia do Ministério Público Federal, fortalecido a Polícia Federal e a Controladoria-Geral da União, além de terem apoiado a aprovação pelo Congresso Nacional da Lei da Ficha Limpa, o aperfeiçoamento das leis sobre lavagem de dinheiro e organizações criminosas, bem como a Lei Anticorrupção. É verdade. Todas essas medidas atenderam à exigência de cumprir a promessa de moralizar a vida pública que fora bandeira do PT nos mais de 20 anos em que fez oposição "a tudo o que está aí". Mas, ao mesmo tempo que publicamente adotava com alarde medidas moralizadoras, nas sombras, membros proeminentes dos governos petistas cometiam e reincidiam no assalto aos cofres públicos.

Para Dilma e seus companheiros esses fatos não têm grande importância, como tampouco importam as manifestações públicas contra a corrupção no governo e a favor do afastamento da presidente. Protestos de centenas de milhares de brasileiros nas ruas, como ocorreu em 15 de março - como explica Beto Vasconcelos -, são apenas o preço que a presidente paga pela coragem de permitir o combate rigoroso à corrupção. Ora, não figura entre os poderes da presidente da República permitir ou deixar de permitir que a Polícia Federal e o Ministério Público cumpram seus deveres.

Enquanto Dilma paga resignadamente seu tributo à moralidade pública, mais uma leva de dirigentes do partido enfrenta os tribunais, entre eles o tesoureiro nacional da legenda. A situação de Vaccari Neto é sintomática do impasse em que a Operação Lava Jato colocou o PT. O tesoureiro exerce uma função essencial para o funcionamento do partido, porque dele depende a arrecadação de recursos junto a doadores. Isso significa que passaram por ele todas as doações das empreiteiras envolvidas na Lava Jato. Apesar de declaradas legalmente à Justiça eleitoral ao entrar nos cofres do partido, essas doações têm origem ilegal, no esquema de propinas, de acordo com as investigações da força-tarefa e das delações premiadas de diretores e funcionários da Petrobrás.

Desde que o nome do tesoureiro apareceu nas investigações, a direção do PT tem repudiado as acusações e garantido que Vaccari só será afastado de suas funções e da legenda se for condenado pela Justiça. Embora muitas lideranças petistas considerem o afastamento preventivo do tesoureiro uma medida de cautela para preservar a imagem do PT, Vaccari se mantém irredutível, forçando o partido a apoiá-lo. Deve ter bons argumentos.

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