segunda-feira, 20 de abril de 2015

Gente na rua é poder? – Editorial / O Estado de S. Paulo

Vigora no imaginário coletivo brasileiro a ideia de que gente na rua é poder. Se uma causa conseguir levar as pessoas à rua, tal causa sairá vencedora. Afinal, não foi isso o que se pensou nas Diretas-Já? Não foi isso o que ocorreu no impeachment de Collor?

Mas a ideia de que o povo na rua consegue o que quer nem sempre corresponde aos fatos, embora se fundamente no pressuposto de que, numa democracia, o poder está nas mãos do povo.

Também essa afirmação precisa ser matizada. Não estamos numa anarquia, onde quem grita mais forte e reúne o grupo mais ruidoso vence. Numa democracia representativa, o poder de arregimentar não é sinônimo perfeito de poder político. O povo tem o poder em suas mãos quando vota. Depois, ele é transferido temporariamente aos seus representantes.

Mas, então, qual é o poder do povo nas ruas? Obviamente, ele exerce influência, tem poder. Mas tal poder é exercido de forma indireta. A atuação nas ruas é vitoriosa apenas quando consegue modificar os cálculos políticos de quem detém o poder. Por exemplo, não basta que a maioria da população diga que Dilma Rousseff merece o impeachment. As pessoas que detêm o poder de interromper o mandato da presidente - no caso, os parlamentares - precisam se convencer da realidade prática de que, sem Dilma, as coisas ficarão melhores. Dizer simplesmente que, com Dilma, as coisas estão ruins não tem, por si só, força política.

Estar na rua não basta para mudar destinos políticos. Tornou-se hábito, por exemplo, falar que o regime militar acabou porque o povo foi às ruas. A ideia é bonita. Mas, analisados os fatos, fica evidente que o regime militar acabou, no momento em que acabou, por uma decisão política dos próprios militares. A versão de que o povo nas ruas alterou significativamente a história é uma construção teórica posterior. Muito bonita, repita-se, mas falsa. Alguns dirão: mesmo que não seja de todo verdade, essa construção ressalta a importância da participação popular nos acontecimentos históricos. Mas a democracia se constrói à base de fatos reais e argumentos consistentes, e não de meras idealizações. Criar mitos que falseiam a realidade não leva as pessoas a ter influência prática na vida pública, que é o que importa numa democracia.

Reconhecer que o povo nas ruas não tem o poder que se imagina não significa retirar a legitimidade das manifestações nas ruas. Ao contrário. Ir às ruas é em si meritório, pois significa que cada um está dedicando o seu tempo a promover algo que considera benéfico para a sociedade. A questão está em fazer essa mobilização gerar efeitos práticos, políticos. Daí a importância de entender como funcionam os mecanismos de um regime democrático.

Também não significa que o sistema representativo seja perverso, como se o poder tivesse sido usurpado do povo por alguns poucos. Há apenas uma transferência temporária de poder a alguns representantes.

Tal sistema - embora, imperfeito - traz importantes benefícios. Ele não é apenas uma solução prática diante da impossibilidade de que a população decida continuamente sobre as questões públicas. Oferece a possibilidade de um saudável distanciamento entre o poder decisório e o poder da maioria, ao fornecer as condições práticas para a tomada de decisões impopulares, mas absolutamente necessárias para a condução responsável de uma nação.

E aqui se desvela outro aspecto fundamental da democracia representativa - a responsabilidade pelas decisões, assegurada pelo caráter temporário da transferência de poder. Responsabilidade que não existe, por exemplo, nas manifestações de rua.

Todas essas questões sobre o exercício do poder podem parecer complicadas. Não precisa e não deve ser assim. Cada um do povo deve ser responsável por suas escolhas. Só assim os representantes assumirão a sua responsabilidade pelo bem comum, em sintonia com o sentir da população. São eles os responsáveis por traduzir no momento presente as aspirações da população em consequências práticas, nesse equilíbrio sempre instável da política, entre o desejável e o possível. A população está dizendo o que considera ser desejável - e essa é a sua força. Resta ver qual será a resposta daqueles que detêm o poder, tanto o governo como a oposição.

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