domingo, 31 de maio de 2015

Ferreira Gullar - As Bienais e as vanguardas

• Até algumas décadas atrás, o propósito do artista era criar algo que sobrevivesse a ele --que se perpetuasse

- Folha de S. Paulo / Ilustrada

A Bienal de Veneza deste ano, inaugurada no dia 9 de maio, é mais um acontecimento do chamado campo das artes plásticas que leva à reflexão as pessoas que se interessam por esse tipo de expressão artística.

Criada em 1895, na cidade italiana que se tornou, desde então, referência obrigatória na história das artes plásticas modernas, foi ela a origem de várias outras mostras bienais de caráter internacional --inclusive no Brasil, caso da Bienal de São Paulo, inaugurada em 1951.

Desse modo, a história da Bienal de Veneza se confunde com a própria história da arte do século 20, que, no curso destes anos, sofreu mudanças radicais.

Nascida no momento em que a arte ocidental iniciava um processo radicalmente inovador, tornou-se naturalmente a exibição bienal das mais diversas manifestações das vanguardas que, a partir de então, determinaram o curso das realizações artísticas nesse terreno.

Esses movimentos não foram poucos, do cubismo ao expressionismo, do neoplasticismo ao dadaísmo e ao surrealismo, passando em seguida pelo concretismo, tachismo, pop art e neoconcretismo até romper os limites do que se considerava arte e que passou a se chamar, à falta de outro nome, de arte contemporânea.

Essa tendência, na sua extrema diversidade e radicalismo, não cabe na definição usada até então para designar as distintas manifestações que as artes plásticas adotaram desde a implosão cubista, no começo do século 20, em Paris.

Como já tive oportunidade de observar, o cubismo estabeleceu uma ruptura na relação entre arte e natureza ao invertê-la: o pintor, então, em vez de partir da realidade para fazer o quadro, parte da tela para inventá-lo.

Desde então, ganhou ele uma liberdade sem limites para fazer o quadro, uma vez que, agora, tudo o que puser na tela vira expressão, vira arte, seja areia, arame, barbante, papel de jornal ou estopa.

Quando Picasso cola na tela um recorte de jornal, naquela época, inventa o "ready-made". Marcel Duchamp aprendeu a lição e a radicalizou: pôs nome num urinol, assinou-o e o expôs como obra de arte.

Esse gesto de Duchamp --que completará um século daqui a dois anos-- determinou uma atitude inusitada na relação artista-obra, já que o fazer artístico tornou-se desnecessário. Afirmou, então, o próprio Duchamp: "Será arte tudo o que eu disser que é arte".

A verdade, porém, é que ele nunca deixou de fazer arte, uma vez que "O Grande Vidro" e "Étant Donnés" são obras suas, com as quais despendeu anos (oito com a primeira e mais de 20 com a segunda).

Não resta dúvida, no entanto, que essa ruptura com o conceito de arte se afirmou nas últimas décadas, e particularmente as bienais passaram a aceitá-lo.

Elas tiveram, nesse processo, um papel importante. O fato de terem se tornado a vitrine de tudo o que se fazia de mais avançado em matéria de arte no mundo inteiro fez delas também um fator estimulante da produção artística e, naturalmente, das novidades, a tal ponto que, a partir de determinado momento, muitos artistas concebiam instalações apenas para serem expostas nas bienais.

Não por acaso, os novos procedimentos artísticos --como performance e instalações-- são na verdade realizações improvisadas e efêmeras, feitas para acontecerem nas bienais e durarem o tempo dessas mostras.

Todos esses fatores determinaram o caráter atual das bienais e o vale-tudo da chamada "arte contemporânea". Até algumas décadas atrás, o propósito do artista era criar algo que sobrevivesse a ele, que se perpetuasse na admiração das pessoas.

Por isso mesmo, a realização da obra implicava o domínio de uma linguagem original e a capacidade de transcender a mera realização artesanal.

Hoje, como disse há pouco, as obras, como as bienais --com exceções, é claro--, têm duração prevista, como se fossem ambas a mesma realização: são feitas para durar pouco.

A atual Bienal de Veneza não foge à regra, conforme as informações que nos chegaram pela imprensa. Uma Igreja Católica foi convertida em mesquita islâmica; artistas do Paquistão e da Índia exploram questões da divisão territorial; outras instalações denunciam a violência contra mulheres, travestis e transexuais.

Algumas delas são manifestações louváveis, sem dúvida, mas nada têm a ver com artes plásticas.

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