domingo, 14 de junho de 2015

Cacá Diegues - O direito das tribos

• O direito de escolher seu modo de viver é uma conquista do homem moderno

- O Globo

A foto nos jornais, onde se veem deputados a protestar, por trás da Mesa da Câmara e de seu presidente, contra manifestações de minorias, me deu arrepios.

As vítimas eram as recentes Parada Gay e Marchas das Vadias e da Maconha, das quais os deputados expunham, com os braços rijos, fotos que consideravam obscenas. No rosto deles, havia uma tensão de horror moral em confronto com a picardia de adolescentes descobrindo a vida. Meus arrepios vão por conta da imensa distância entre aqueles políticos legitimamente eleitos e a sociedade que deviam representar.

A Guerra Fria, que até recentemente dividia o mundo em dois lados claros e opostos, está sendo sucedida pela explosão de vários mundos no interior de todas as sociedades. Não se travam mais heroicas batalhas entre opções genéricas, como república contra monarquia, democracia contra autoritarismo, capitalismo contra comunismo.

As grandes dissensões que dividiam o planeta viraram história, peças do museu de costumes da humanidade. Elas foram substituídas pela afirmação de grupos no interior de cada sociedade, uma emersão de “tribos” que compõem o corpo social, mas não disputam o poder hegemônico dentro dele. É pouco provável que um dia ouçamos falar em partidos Gay, Afrobrasileiro ou dos Maconheiros. Essas “tribos”, como todas as outras, não visam ao poder sobre ninguém; elas se manifestam em nome do direito de viver como melhor entendem.

Os ativistas e militantes de suas “tribos” muito raramente se manifestam sobre assuntos abrangentes. Suas palavras de ordem, temas prediletos e utopias (porque elas não acabam nunca!) são sempre específicos de sua identidade. Seus programas só dizem respeito a essa identidade, parece não haver mais projetos para o conjunto da sociedade. É como se, da clássica oposição entre individualismo e coletivismo, tivesse surgido triunfante uma espécie de tribalismo, o meio do caminho entre os dois sonhos radicais da Guerra Fria.

Meu escândalo com o gesto dos deputados se dá diante de sua ignorância sobre o que está acontecendo. O direito de escolher seu modo de viver é uma conquista do homem moderno, no interior de qualquer tipo de sociedade. Esse direito só é contestado pelas religiões fundamentalistas, da simples repressão de algumas correntes evangélicas ao horror do Estado Islâmico. Os nossos deputados parecem identificar-se com esse obscurantismo.

A Editora Gryphus está anunciando o lançamento de “Rio, eu te amo — 11 diretores em ação”, organizado por Pedro Butcher. O livro é uma reprodução de textos e imagens relativos ao filme homônimo, realizado em episódios por Carlos Saldanha, John Turturro, José Padilha, Fernando Meirelles, Andrucha Waddington, Paolo Sorrentino, Guilherme Arriaga e Vicente Amorim, produzido pela Conspiração. O livro trata do trabalho de cada um desse diretores, das ideias e dos sentimentos que irrigaram esse filme de amor ao Rio de Janeiro.

Como todo filme em episódios, há, em “Rio, eu te amo”, esquetes melhores que outros, o que causa um certo desequilíbrio no conjunto. Alguns resenhistas acusaram o filme de “cartão-postal”, por registro das belezas cariocas. Mas essas belezas estavam lá, diante de nós, não foram criações artificiais para enganar o público. É o mesmo que pedir aos filmes sobre Nova York que não mostrem o Central Park, a Ponte do Brooklyn ou o Empire State. Ou aos filmes parisienses que evitem o Rio Sena e a Torre Eiffel.

Ninguém faz um filme só para hoje. O cinema é para sempre, daqui a 50 anos veremos as imagens de “Rio, eu te amo” como um registro de como era o Rio de Janeiro, saberemos mais sobre nosso passado, como as gerações anteriores ao cinema nunca tiveram a oportunidade de saber.

Uma das grandes emoções cinematográficas de minha vida se deu quando vi, no final dos anos 1960, “Flying down to Rio” (“Voando para o Rio”), filme de Thornton Freeland, com Fred Astaire, Ginger Rogers e Dolores del Rio, realizado em 1933.

A certa altura, um balé de mocinhas nas asas de um avião sobrevoava a Praia de Copacabana e a Lagoa Rodrigo de Freitas como elas eram na época, de uma beleza de tirar o fôlego. Para mim, foi uma profunda experiência de biografia e pertencimento. Não duvido que meus netos sentirão o mesmo ao verem, em cinematecas do futuro, “Rio, eu te amo”.

Momento de marketing pessoal. No último dia 4 de abril, abordando o declínio dos partidos tradicionais nas democracias europeias, escrevi, a propósito das eleições espanholas que estavam por vir, que “surgem então organizações políticas, até aqui inexistentes ou marginais às tradições partidárias, em que os princípios genéricos, à esquerda ou à direita, são menos importantes do que projetos pragmáticos, específicos e imediatos. (...) Na Espanha, duas dessas novas agremiações, o Podemos e o Cidadãos, disputam a terceira força nas próximas eleições”. No início deste mês de junho, o Podemos e o Cidadãos foram os grandes vitoriosos nas eleições espanholas. E viva Ada Colau, líder popular e nova prefeita de Barcelona, apoiada pelo Podemos.
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Cacá Diegues é cineasta

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